3 DEMARCAÇÕES TERRITORIAIS NO SÉCULO XII A delimitação de direitos foi uma preocupação da Igreja ao longo dos séculos XII e XIII. Procurava sair de uma herança de relativa autonomia das igrejas locais para a afirmação do poderio episcopal, centralizado na sede diocesana. Como terá este processo ocorrido em Campanhã? A partilha de poder sobre o burgo do Porto, em expansão demográfica e crescente significado económico, é feita entre os condes-reis de Portugal e a Sé Portucalense, que revelava dinamismo notável na tarefa de reorganização da diocese. Comecemos pela demarcação geográfica. Os limites orientais da jurisdição senhorial (e não apenas eclesiástica) da Sé Portucalense são traçados na área de Campanhã. Conhecer esses limites, recorrendo ao contributo da toponímia, permanece, ainda hoje, uma questão em aberto. A discutida carta de doação e couto, de Abril de l120, ao bispo do Porto D. Hugo, por D. Teresa, introduz um primeiro cone na área de Campanhã, que, como vimos, englobaria parte das actuais freguesias de Rio Tinto e Valbom. A rainha faz doação, à Sé Portucalense, de todo o burgo «com suas rendas, e suas adjacências, e com a igreja de S. Pedro e Rotundela e Busto e castro que chamam Luneta com todas as suas pertenças e com Germinadi...». E acrescenta «dou e concedo perpétua estabilidade sobre as ditas herdades e pescarias» à Sé do Porto e «faço couto(1) firmissimo» pelos limites que indica. A demarcação do couto é feita por «Lunetam» (Noeda), ribeiro «Connari» (Caneiro?) junto ao «placium» (paço) de Garcia Gonçalves, «petras fixiles» (Antas) e daí para Paranhos. A identificação dos topónimos referidos não parece ainda tarefa esgotada(2). Se Luneta e Germalde (em Cedofeita) não têm suscitado dúvidas, o mesmo não se verifica para os restantes topónimos, cuja localização não é tão evidente. «Petras fixiles» habitualmente identificadas com «Antas», são objecto de interpretação diversa por Alberto Sampaio, que lhes não atribui carácter de monumento funerário, mas de marcos divisórios de propriedade, correspondentes, de uma maneira geral, aos «terminos fixos» do Código Visigótico, mencionado também como «Petras fictas» ou «fictiles», em contexto que indica claramente demarcação (3) . Controvérsia também quanto à localização de S. Pedro. 0 Padre Miguel de Oliveira, salientando que a igreja de S. Pedro, Busto (Bosque), Rotundela e o castro (de Noeda são mencionados de modo a formar um conjunto, conclui que se deveriam localizar próximos uns dos outros, em Campanhã e não em Miragaia, como pretendera, entre outros, João Pedro Ribeiro. Reforça o seu parecer, afirmando que «não há qualquer menção deste templo nem do nome de Miragaia antes de meados do século XIII». Em 1247 S. Pedro (de Miragaia) seria, ainda, uma simples ermida (heremitagio) (5). Miguel de Oliveira conclui assim que S. Pedro referido na caide doação do Couto seria em Campanhã. No entanto, dados recentemente publicados fazem recuar para 1120 a primeira referência a S. Pedro de Miragaia, e os elementos arqueológicos mais antigo «situam-se provavelmente no século IX»(6). Por outro lado, parece-nos pertinente a aproximação de «Rotundela», no aro de influência de Noeda, com o lugar de Redondelo, em Valbom. 0 topónimo «Redondela» volta a aparecer num documento de particular interesse. Trata-se de uma convenção(7) datada de Setembro de l120, em que o bispo D. Hugo aceita da família ligada à igreja de Santa Maria de Campanhã, Paio e Garcia Gonçalves e respectivas esposas, Marina e Toda Gonçalves, quatro casais: um em «Portugal, na margem do rio Douro», «justa portum de riuuo de carros», outro em «as Eyras» (ou «Azeiras»), dois casais no termo de Paranhos e ainda a décima de Redondela. Em troca, o bispo e seus cónegos renunciam ao imposto da «parada» ou «jantar» na igreja de Santa Maria de Campanhã e a outros direitos diocesanos. Mais isenta a igreja do pagamento de portagem e de coima. A isenção é dirigida «a vós, os padroeiros, amigos e vizinhos» : a comunidade formada pelos que têm direitos na igreja, como o de apresentar abade, identificados com a nobreza local, os seus próximos e finalmente os vizinhos ou fregueses chamados pelo mesmo sino. É a primeira referência a Campanhã como comunidade. 0 documento tem a particularidade de ilustrar um momento de um processo de transferência de poder em Campanhã: além de bens fundiários (cinco casais), a nobreza local aliena direitos ia décima de Redondela) em favor da Sé Portucalense. Em contrapartida, o bispo cede direitos de que não usufruía enquanto Santa Maria de Campanhã deteve um estatuto de mosteiro, anterior à reorganização da diocese. Não mais haverá referências ao mosteiro de Campanhã. Já senhor do couto do Porto, o bispo D. Hugo define, na convenção atrás referida, os limites «de tudo o que de vós aceitamos» : do Douro a «petram Assina», a «petram pintam», a seguir «super fontem de suseranam supremam das vellas», daí ao «portum de Lupis» e, por fim, ao termo de Paranhos. Segunda delimitação na mesma área, no mesmo ano de 1120, desconhecemos em que medida se aproximam ou não. Será plausível a tentativa de relacionar «supremam das vellas» com Outeiro e Alto da Bela, corruptela de «vela», alusivo à obrigação de camponeses e lavradores de meter sentinela e vigiar por turnos, nos cimos dos montes? (8). Dentro da área coutada, o bispo acumula direitos eclesiásticos e direitos senhoriais. É, portanto, de D. Hugo que o burgo do Porto recebe, em 1123, a carta de foral(9). Visando promover o povoamento, enquadra a vida económica, determina impostos a cobrar, impõe a uniformização das medidas, regula as multas judiciais. Como vimos, parte de Campanhã íntegra a área coutada e, por isso, também se lhe aplica a carta de foral. Extra-muros, a carta dispõe que «todo aquele que plantar vinha no terreno que o meirinho lhe atribuir no termo do burgo («extra-murum») pagará a quarta parte do vinho, não dando senão a décima do que semear, enquanto a vinha produzir. E quem arrotear com a enxada pelos montes ou por vales pague a quarta parte da produção e possua a terra perpetuamente». A difusão da vinha «em terras de cidra e de cerveja», localizada por Orlando Ribeiro na Alta Idade Média, aparece, na área do couto a par com a tarefa de desbravar «montes e vales», o que, de certa maneira, nos dá a imagem do povoamento reduzido da região, mas também da pressão do aumento -populacional. 0 desmembramento dos antigos domínios de exploração directa e a intensificação do povoamento detectam-se na documentação do século XII, pela referência a numerosos casais, objectos de doação, venda, escambo. Tais parcelas, como as «villae» antigas, continuam a ser localizadas, naquela centúria, em função de montes («Monte Altum», «mons Kastro»), permanecendo a fórmula «discurrente rivolo Kampaniana prope flumen Durio». Também frequente naquela vasta época é a designação de herdade («hereditate»). Utiliza-a o bispo D. Pedro III (10) que, temendo pela sua alma e pelas dos seus antecessores, resolve doar aos seus cónegos a herdade de Campanhã, com o compromisso de, presbíteros, diáconos e subdiáconos, lhe assinalarem o aniversário da morte com dados actos litúrgicos. Trata-se da instituição da «capela» muito difundida em tempos medievais. Na carta, datada de 1128, o bispo precisa que nem ele, nem os seus sucessores exercerão, de futuro, qualquer poder na herdade e que «os homens das suas villas só aos cónegos responderão». Como articular herdade e villas? Herdade terá o sentido de «conjunto de campos situados por vezes em várias villae» (11). 0 cabido teria assim entrado na posse de bens fundiários em Campanhã, dispersos, descontínuos no espaço, o que seria, provavelmente, a norma. 0 documento é omisso quanto à localização das parcelas, não permitindo conclusões sobre os limites orientais do couto do Porto, na área de Campanhã. Mantendo a ordem cronológica que adoptamos, confrontemos a demarcação dos três coutos conhecidos: o couto do Porto, confirmado e ampliado por D. Afonso Henriques ao bispo D. Peculiar (l138), o de Rio Tinto (l141) e o de Gondomar (l143). Em relação aos limites orientais do couto do Porto, mais uma vez os pontos de referência são obscuros e sujeitos a controvérsia: desde Lueda à fonte de Conari Fojo Lobal, Pedras fixas, Monte Loseneiro, Arca de Samigosa, Mamoa Pedrosa, Penhas da Regueira... A aproximar de topónimos já referenciados, apenas Fojo Lobal e o «portum de Lupis» atrás citado. Identificar-se-á com o «Fojo», depois Praça das Flores? Remetamo-nos ao mapa proposto por Rogério de Azevedo(12). Quanto à área coutada ao mosteiro de Rio Tinto e respectiva abadessa, D. Ermezinda Guterres, por D. Afonso Henriques, obedece aos seguintes limites: «mamoa sobre Cresconiões (Ribeiro dos Coriscos), colina de Porrinhos Maus (Cabeço de Giesta), Rebordãos, fonte dos Currais, marco entre Contumil (Gontemir) e Vila Cova, Pego Negro (Campanhã), Estrada Velha, marco entre Soutelo e Manariz, termo Cabanas, Rio Escorioso (Sisteiro, ribeiro de Portelas) igreja de S. Mamede e porto de Recemir (ribeiro de Baiões)» (13). Os marcos do conto de Gondomar são assim enumerados: 1.° da «Fonte Petrina» onde entra no Douro; 2.° lugar que chamam «Paredes»; 3.° vértice do monte chamado «Teuvili»; 4.° cume do monte de «Cortimis»; 5.° desce à fonte de «Varzena» e vem até «Torviscarium» onde fica a 5.ª lápide; 6.° em «Tiraz» e vem até «forum de Campianiana»; 7.° «Tatela»: 8.° no «portu de Senra»; 9.° «Monte queimado»; 10.° Deveza, onde estão as antigas lápides de couto(14). Atentemos nos topónimos que documentos mais tardios consideram lugares de Campanhã: Currais, Contumil, Tevilhe, Tiraz e Pego Negro. Provenientes de um mundo rural que ainda sobrevive em Campanhã, tais topónimos constituem, curiosamente, as marcas mais remotas, que ali conhecemos, de actividades artesanais, inseparáveis dos cultivos das margens dos rios Tinto e Torto Assim, «Tiraz» que significa pano de linho com desenhos ou ramos, «alude talvez ao tírio ou púrpura», cor em que tais ramos se usavam(15). «Pego» de «pelagus» designa «qualquer ribeiro, rio, riacho, lagoa, açude, lago, poço, tanque e qualquer ajuntamento ou rego de água» (16). 0 cónego Arlindo da Cunha associa «pego» à tarefa de «curtir o linho para o que se mete na água logo depois de ripado» (17). Teuvili reaparecerá na forma «Teville» em prazos do Cabido (1479, 1530): «azenha de Teville, no rio de Campanhã». Mas, é bem mais antiga a primeira referência que conhecemos da actividade artesanal em Campanhã: no ano de 1200 foi vendida, por um vaso de prata, uma levada de moinhos(18). E os Currais? 0 «caminho dos currais corresponde à actual Rua de Rodrigues Semide. Nos prazos oitocentistas da Câmara do Porto, em Campanhã, é frequente a referência a «terrenos nos montes d'Arioza, Currais e Aldeia de Contumil». Nos mesmos prazos encontra-se também a referência a Monte da Fonte Pedrinha, em Campanhã. Finalmente, Contumil, de raiz germânica, deriva, segundo J. Piel, do genitivo Gondemirus, palavra composta que significa «célebre no combate». A preocupação com os limites, a insistência na demarcação de termos, tão evidentes no conjunto de documentos que acabamos de referir, verifica-se também no interior da própria Sé Portucalense. Em l195, o bispo D. Maninho Rodrigues divide com os seus cónegos os rendimentos do bispado, atribuindo-lhes o «reguengo de Campanhã e Luenda»(20), isto é, os rendimentos da Igreja em toda a vasta área não coutada de Campanhã. Está assim definido, em fins do século XII, o quadro institucional de Campanhã até ao século XIX: entre o Couto (partilhado pelo Bispo e pelo Cabido) e a terra do «senhor rei» ou reguengo, o equilíbrio parecerá sempre instável. 0 espaço, como fomos notando, alarga-se de Rotundela (Valbom) a Currais (Areosa), a ocupação, muito dispersa, é agrícola (vinho, cereais) mas também industrial: o fabrico de tecido de linho, a moagem, localizados nas imediações do «esteiro», o «estuarium», dos romanos. (1) Couto, propriedade toranada imune por documento régio. Definia-se oficialmente, no reinado de D. Dinis, o acto de coutar uma terra como «escusar os seus moradores de hoste e de fossado, do foro e de toda a peito». Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1971,1, pág. 738-9. (2) Horácio Marçal Charada Toponímica - 0 Tripeiro, ano VII, n.° 4, Agosto 1951, pág. 94. (3) AIberto Sampaio, Estudos Históricos . . . , l, pág. 46. (4) Padre Miguel de Oliveira. «0 Senhorio da Cidade do Porto», «Lusitania Sacra», tomo IV, Lisboa, 1959, pág. 30 e seguintes. (5) Ibidem, pág. 32. (6) Manuel Luís Real, Inéditos de Arqueologia Medieval Portuense, Arqueologia, n.° 10, Dezembro de 1984, pàg. 31, 32. (7) Documentos Medievais Portugueses, V, IV, Doc. 142, pág. 121, 122. Para os organizadores trata-se de «Arquétipo de um falso do século XIII. Pode contudo assegurar-se que o seu contexto assenta em grande parte em dados verídicos.» Também in Censual do Cabido da Sé do Porto, Biblioteca Pública Municipal do Porto, Porto, Imprensa Portuguesa, 1924, pág. 79-80. (8) Viterbo, Elucidário II, pág. 627. (9) História da Cidade do Porto, vários, Portucalense Editora, 1.° vol., 1962, pág. 308 e seguintes. (10) Censual do Cabido da Sé da Porto, pág. 384-385. (11) José Mattoso «Le Monachisme...», pág. 247. (12) Parte 1. deste trabalho. (13) Padre Agostinho de Azevedo «A Terra da Maia (Subsídios para a sua Monografia)», vol. I, Imprensa Moderna, 1939, pág. 197-198. (14) Camilo de Oliveira, «0 Concelho de Gondomar»..., vol. I, pág. 18-19. (15) Viterbo, Elucidário II, pág. 610. (16) Ibidem, pág. 471. (17) Cónego Arlindo da Cunha «0s Tecidos na Toponímia, Braga, 1965. (18) Arquivo Distrital do Porto, «Livro dos 0riginais» do Cabido, 1.° XII, fl. 40. (19) J. Piel, «0s nomes germânicos...» I, pág, 72 e 159. (20) Censual do Cabido, pàg. 496. |