2 0 MOSTEIRO DA «VILLA CAMPANIANA»
Evoquemos uma região acidentada, encaixando dois pequenos e estreitos vales onde correm ribeiros que procuram o Douro. 0 panorama só pode ser rural: soutos de castanheiros e carvalhos, bouças e maninhos, assinalado, aqui e além, por atalaias, nos pontos mais altos. A época é insegura, os Mouros organizam incursões, como as razias de Almançor em 994 - 995 e 997, os Vikings atacam de surpresa, é preciso manter a vigia. Meia dúzia de pequenas explorações agrícolas, as «Villae» de tradição romana, trazem descontinuidade à paisagem. Manchas agricultadas dispersam-se pelas zonas mais férteis. Junto aos ribeiros, e no estoiro, a actividade piscatória não seria desprezível. São terras reconquistadas ao Islão: nelas se invoca Santa Maria Virgem, o Salvador, o apóstolo S. Tiago e também os santos: S. Martinho, S. Cristóvão... As igrejas, provavelmente fundadas pelos detentores da terra, reforçam os laços entre os que, à sua volta, desbravam, cultivam, apascentam. São os embriões do que virão a ser, em breve, duas ou mais freguesias. Separado por campos despovoados, Campanhã fica «longe» do Porto, então a desenvolver-se mercê da sua posição estratégica, a partir do morro da Pena Ventosa, tirando partido, junto ao rio, do comércio que o Douro lhe abre, pelo Atlântico, para a Europa do Norte. Uma família, pelo menos, destaca-se na região: detém um considerável domínio, mesmo que composto por parcelas descontínuas, resultantes da presúria cristã sob os reis de Leão e Castela. É a nobreza de Campanhã, cuja história começa bem antes da fundação da nacionalidade. Conhecemo-lhes os nomes: Gonçalo Raupariz, «juiz supremo» do rei Fernando Magno, rei de Leão, e seu filho Garcia Gonçalves, contemporâneo de D. Afonso Henriques. À mais antiga referência documental a Campanhã, na inventariação onomástica publicada pelo Padre Domingos À. Moreira(1), situa-se no longínquo ano de 994, na carta de doação de uma herdade na «villa» de Baguim (Rio Tinto), nas proximidades do «ribulum campaniana», rio de Campanhã(2). A localização daquela «villa», obedece à fórmula usual na documentação da Alta Idade Média: a identificação de lugares é feita, habitualmente, por referência a um castro ou «civitas», um monte e o rio mais próximo. Associado ao denominado «rio de Campanhã», encontramos ora o castro de Gondomar ora o castro de Noeda, precisando-se sempre «território de Portugal, perto do rio Douro», e, num caso conhecido, acrescenta-se mesmo «da parte galega» (3). À «Callaecia» romana tinha, como limite sul, o rio Douro (4). Como poderemos interpretar a referência a castros, nos séculos X e XI, nos mais antigos documentos da região? C. A. Ferreira de Almeida chama a atenção para a sobrevivência dos castros na Alta Idade Média, não apenas na função de referência espacial, mas persistindo mesmo na função defensiva e organizadora das populações(5). E José Mattoso, ao referir-se ao papel das cidades na reordenação territorial, escreve: «Até lá, [1070] é provável que os castelos ou fortalezas estabelecidos muitas vezes sobre os antigos castros, constituíssem os pontos fundamentais de apoio da rede administrativa orientada pelos condes» (6). Os castros de Noeda e de Gondomar organizariam, mesmo que debilmente, um espaço de limites imprecisos, cujo eixo é constituído pelo «rio de Campanhã», o actual rio Torto, e, certamente o vale do Rio Tinto. Nesse espaço, a documentação localiza, a partir do ano 1000, a «villa campaniana», num enquadramento cristão que, a pouco e pouco, se fora construindo a partir do século IV.É frequente, no tempo da Reconquista Cristã, a associação da atalaia com uma ou mais «villae» a que não faltará nunca, na documentação alti-medieval, o nome do santo padroeiro. A «villa campaniana» aparece ligada não apenas ao orago que persistiu até aos nossos dias - Santa Maria -, mas também a outros oragos: efémeros, como S. Martinho, ou que não se associam hoje a Campanhã, como os dois casos notáveis de S. Mamede e de S. Cristóvão de Rio Tinto que, no século XI, são associados a Campanhã. S. Martinho é referido em documento de 1059: «..., villa de S. Martinho que fica junto ao Rio Douro, entre a villa olivaira [Oliveira do Douro] e villa campaniana,»(7). Maior precisão revela outro documento, do mesmo ano, que o Padre Domingos A. Moreira inclui, tal como o anterior, na sua lista de «simples capelas e curatos efémeros» : «sanctu martinu villa sancta marra»(8). Quanto a S. Mamede e a S. Cristóvão de Rio Tinto, a documentação não deixa dúvidas sobre a sua localização, no século XI, no aro de Campanhã. Assim, no ano 1000, a igreja de S. Mamede é incluída na área «campaniana» (9), tal como, em 1077, «sancti christofori de campaniana ubi dicent de rei tinto» (10). Estamos perante uma antiga unidade territorial cujos limites ultrapassam largamente os da actual freguesia. A região de Campanhã abrangia Campanhã e Rio Tinto. «Esta zona teve uma romanização intensa» (11). A designação de «campaniana», deriva, segundo J. Piel, de «Campanius», nome do proprietário do domínio. Já Alberto Sampaio recorrera a «campaniana» como exemplo, raro, de gentílico romano que se adjectiva com o sufixo - anus na denominação do prédio (12), sendo a nasalação, segundo o mesmo autor, um contributo suevo. A «origem das vogais nasais do português, caso único entre os vários dialectos neo-latinos da Península» explicar-se-ia pela influência dos Suevos unicamente na Galiza (13). A forma «campanaan», herdeira da latina «campaniana», evolui posteriormente para Campanhã. A persistência da designação, desde a «villa» romana ao século XI, explica-a Alberto Sampaio por não se terem feito alterações no regime agrário. Defende que não houve partilha de terras entre romanos vencidos e vencedores germânicos, «pois se a tivesse havido, com a divisão ter-se-iam alterado as demarcações» e «a regra geral foi a conservação» e não a substituição de nomes(14). Por outro lado, ao topónimo de origem romana, vai juntar-se o nome do santo padroeiro, o orago da freguesia, o que esclarece «sob que influência se operou a transformação dos antigos prédios nas novas agremiações de lavradores» (15). Também C. A. Ferreira de Almeida defende a «imediata filiação de algumas paróquias românicas em explorações luso-romanas» (16), sugerindo mesmo que os limites de muitas poderão ser reconstituídos com o levantamento do traçado de caminhos antigos. Os grandes caminhos públicos romanos marcavam a periferia das «villae», que se encontravam no centro dos domínios, e assim, o mais antigo parcelamento do território, o parcelamento romano, deixaria vestígios, transcorridos séculos, não só na designação das próprias «villae», entretanto cristanizadas, mas também na rede dos caminhos mais antigos. Em Campanhã, caminho muito antigo seria a ligação Porto - Trás-os-Montes, cujo traçado terá permanecido ao longo dos séculos, aparecendo-nos documentado na Idade Média e coincidindo já com o traçado da actual estrada de Valongo. Seria esse caminho antigo, possivelmente já utilizado pelos romanos, limite das «villae» ou grandes propriedades agrícolas que existiam em Campanhã. Que sabemos dessas «villae»? A documentação imediatamente disponível permite-nos uma primeira informação, se bem que ainda muito vaga, da «villa campaniana», em 1058 (17). Carta de doação ao Mosteiro de Santa Maria de Campanhã. CCCCIX Gomice quidam Monasterio S. Mariae, in villa de Campanham sito, bona immobilia quamplurima quae in ipsa villa aliisque locis possidebat, supellectilem, victum, et ornamenta ecclesiastica donat. In ipso chirographo soror ejusdem Gomici donationi fratis alia bona propria. Charta autographa, e scrinio conventus monachorum Conimbricensis, da Graça dicti, in Publicum Archivum delata, nobis texitum praebuit. 1058 Christus. In nomine patris celesti et indiuidue sancte trinitatis ego famulus dei gumice albar (?)qui sum peccatoribus mole depressus et mullo boni in me...... ex meritis in celum adflictus deo cuicura est de omnibus recordor ego in corde meo cum ipsis amaritudinis timendum diem mortis metus inforni (sic) et annui mea uolumtate de omnia mea bonitas quos ganabi a iubendute mea domino meo hofferem pro remedio anime mee sicut canonigas sententias adfimat est (?) deo ergo datur quicquid ad fidelibus eglesie iustitissimam (sic) deuotionem offertur. Ita tamen dum eramus auitante in monesterio sancte marie uirginis quum omni alium reliquiarum que ibidem simul sunt recondite quos nostrorum abiorum edifigarunt por series testamenti et regales scripturas uenimus in ipso locum sanctum per consensum ex nostris generibus et propinquis et ganauimus creditates multas unas per cartas alias por series testamenti et alias per congligationes placitis secundum in cartarios et in inuentarios nostros resonant. et conligauimus eas ad aulam ipsius locus sancte marie uirginis et ecce edifigauimus domus et casas et fecimus plantatus que iacent ad aulam ipsius domus sanctorum simul et per alias uillas que super scripturas resonant. est ipso monesterio fundato in uilla campaniana sub alpe castro gondemari discurrente rribulo campaniana terretorio Portugal prope flumen doiro et uillar que nobis cederunt in portione de abiorum uel parentum nostrorum Id sunt quintana ubi parentes nostros auitarunt domus auitationis in pumares in sautus in pomeferis uel generis arborum siue cupus cupas lectos cadedras pane et biuere quantum ad prestituum ominis est in ipsa uilla per suis locis et teminis antiquis et uillar de gutini similiter medietate cum suo prestamo et uilla piniario medietate per suis locis et terminis antiquis cum suas prestationibus pro que demus ad neptis de domna fredenanda alia creditate in refogios siue et alias terras que ad guella inuenandiz demus ad plantare et ad lauorare per placito que abeat inde de illo plantato in quantum durare sua medietate et post illas terras integras remaneant post parte testamento sicut in placito resonat. et adicimus ibi adhuc de uilla paramio vª et illa v demus ad nastros subrinos que sunt de latere ad uerbum que nec uendant nec donent. et illa alia ratione ad frater nostro raupeiro testarunt nobis illa testarunt nobis illa (sic) pro anima de adefonsu rauparez. et concedimus ipsa uilla per suis terminis et locis antiquis quantum ad prestitum ominis est et in se obtinet. et damus aduc de uilla colmenaria de quinione que fuit de matre eito medietate illa nostra quarta et alia quarta que ad nobis frate nostro ermigio per carta concessit et est medietate integra quantum in se obtinet et ad usum ominis pertinet per suis terminis et locil antiquis. et ic ad sancta maria ereditatem quos conparauimus de filis spasando quod per placitum ad illo dederunt ad ipsa sancta maria quantumque ibidem lauorauimus et plantamus et arrupimus sino edificia que ibidem fecimus et cupus cupas tectos catedras mensas pane et biure uel quantum que ibidem ad prestituum ominis est. et aduc adicimus uno signo metallo uno calice et patena argenteos et una casulla et omnis ministeria ipsius eglesie. et ego gumice damus ad ipsius locus sancte marie pro remedio anime mee et sub gratie reliquie ipsius sanctorum elegimus ad contenendo et ad obiurgandum sororem nostram siti confessa sicut more regulare et sub manus uel regiminem abatem sicut canonica sententia docet ei ipsum abate (?) fredenandus presbitero sit.... est de generibus uel propinquis nostris et omnia que in ipso monasterio uel in testamento recorrente in iure de ipsa domna siti.. de ipse fredenand.,... percurrat ad serbiendum dum uita uixerint et post obitum eorum precipimus ut nec donandi nec uendendi nec in aliis scripturis........modum unquam partitione sedeat in ipso monesterio ex nullisque eredibus nostris nis... ore.... dare permane.... nunc aduc concedimus ad ipsum locum et ec (sic) testamentum eglesis uocabulo sancto iacobo de labruia medietatem cum aductionibus suis...... fundato prope monasterio labra et item eglesia que est fundata in ripa alest IIª partes..... lo sancte..... cum suis adiutionibus et prestamus. Et ego siti dei trado ne (sic) ad deum et ad reliquie sanctorum sancte marie uirginis et aliorum..... que ibidem recondite sunt et in testamento resonant cum omnia tam que abeo uel que aduc cum dei adiutorio aucmentare potuero usque ad obitu meo et concedo illo in testamento pro remedio anime mee et de uiro meo christoforus et de filiis meis que iam migrati sunt de oc seculo. et ic adicimus et discernimus meas uillas quantasque ganarunt abolos meas et parentes meas meo quinione ab integro IIIIª integra siuo quantas suas fuerunt sicut super taxatum est et siuo uilla azebeto per suis teminis antiquis siuo mea ganantia siuo et que uenit mici ex uiro meo christoforus quum quantum in se obtinet et ad prestituum ominis est et medietate de gutini et ibi adicimus quod in ordine non conpleuimus ut sedeat gundesalbo rauparez super isto monesterio defensor et adiutor in quantum uixerit et potuerit et nor faciat ibi nulla disturba per nullaque atio et post obitum ipsius dominis super nominatis relinquent ipsos monasterios et ipsas scripturas ad ipse dom gundesalbo raupariz aut de propinquis suis. notum die ipsas kalendas aprilis et era millesima LXXXXVI. Gvmice olbar (?) in ac series testamenti manu mea confirmo + citi confessa manu mea confirmo +. osildus confesso manu mea confirmo +-
froilani confesso manu mea confimo +- gumice ermigiz test. - tello presbitero test. -
nausti presbitero test. Trata-se de uma carta de doação de bens diversos ao mosteiro de Santa Maria, na «villa campaniana», que for( herdada, com suas pertenças, pelo doador, abade do Mosteiro. A localização dá «villa», mantém o esquema acima citado: sob o castra de Gondomar, rio de Campanhã, território de Portugal. Os limites não estão explicitados: a demarcação, como é norma no Entre-Douro e Minho, faz-se «pelos seus lugares e termos antigos». O contraste com a fórmula usada a Sul do Douro. descritiva, joga a favor da continuidade do povoamento e da persistência das tradições(18). Na «villa», teria sido edificado pelos avós do doador, abade Gomes, o mosteiro de Santa Maria Virgem que, como também era corrente, abrigava as «relíquias» dos fundadores. O significado de «cemiterium» no período alti-medieval é de mosteiro, de acordo com a sacralização dum espaço duplamente simbólico. No mosteiro da família, o descendente dos fundadores é naturalmente seu abade, a doação inclui bens mobiliários necessários ao funcionamento do mosteiro (leitos, mesas, cadeiras), um sino metálico, um cálice e patena de prata, uma casula. A situação de ruralidade e o reduzido povoamento vincam a importância do sino: «sub sino» significaria sinal de pertença à mesma comunidade, elemento integrador horizontal - o mesmo sino, os mesmos «fregueses», filhos da mesma igreja. Também são doadas propriedades como uma «quintã», «em que os nossos pais habitaram», com casas de habitação, pomares, soutos, árvores de fruto diversas, e ainda cubas, pão e «biuere»(19), na quantidade necessária, comprovando-se assim uma exploração agrícola directa, integrando áreas de função diversa e complementar. Além da quinta, reserva do domínio, a «villa campaniana» incluía o «villar» de Godim(20) e a «villa piniario», presumivelmente o lugar de Pinheiro. O abade Gomes, herdeiro, com os seus três irmãos, da «villa paramio» (Paranhos) e da «villa colmenaria» (Culmieira, Valbom), doa também a sua parte ao mosteiro, levando a fazer o mesmo um seu irmão e os seus sobrinhos. A instituição religiosa, o mosteiro, funciona aqui como obstáculo da divisão do património herdado. Por exemplo, assegurar na doação «metade» da «villa piniario» acarretou alienar direitos em Refojos, a favor dos «netos de D. Fernanda». Registemos também o papel do mosteiro no desbravamento do solo(21). O abade Gomes valoriza o domínio recorrendo a dois processos: sob a sua própria direcção («trabalhamos, plantamos, desbravamos, edificamos «domus et casas»), e por contrato com o camponês Guella Invenandiz («per placito»). Em 1072, o mesmo mosteiro, dito «asistério de S. Salvador e apóstolo S. Tiago Santa Maria Virgem», que está fundado na «villa campaniana», «onde habitamos», volta a receber nova doação, por parte da devota Siti, irmã do abade Gomes, atrás referido (22). É a sua vez de doar ao mosteiro de Campanhã a parte na quinta que herdara de seus pais, Jeremias e Eilo, o casal de Dom Fralengo de que comprara a pane de seu irmão Ermígio, «villas» na margem direita do Douro («na parte galega, sob o castro luneta») e ainda a «villa Petroso», no lado de Gaia. Em 1058 já doara a Igreja de S. Jacob de Labruge e a «villa» de Azevedo, cujos antigos limites alargara. O mosteiro de Campanhã seria então, na 2.< metade do século XI, um mosteiro familiar, aberto a religiosos de ambos os sexos, cujo abade que, como é norma, descende dos fundadores, administra um conjunto patrimonial em expansão. As ligações familiares dos proprietários do mosteiro de Campanhã, permitem traçar a sua linhagem a partir dos fundadores, publicada por José Mattoso em «A Nobreza Medieval Portuguesa» (23). É a mais antiga que se conhece para Campanhã, documentada ao longo de gerações. Como exemplo, o abade Gomes do documento citado, abade proprietário do mosteiro de Campanhã, desempenha as funções de perito do direito visigótico em Banhos (1047) e nomeia Gonçalo Raupariz «defensor» do mesmo mosteiro. Por sua vez, este julga uma questão com Penafiel, também, também 1047, como «maiorino» de Fernando Magno: a importância da família não era apenas local. A ligação de um mosteiro a uma família nobre é relativamente comum. Em vista, estariam a fuga ao pagamento da terça ao bispo, devida no caso de se tratar de uma igreja, e também a protecção das «relíquias» dos antepassados-fundadores. Como património, os mosteiros entravam na herança familiar, subdividindo-se os direitos pelos descendentes, designados por «padroeiros» ou «patronos», portadores do «direito de padroado», que incluía o direito de indicação do abade, mas também portadores de deveres, como o de preservar a unidade do mosteiro e dos seus bens, o de proteger a comunidade, impedir a sua extinção, dever relevante numa época de instabilidade e de pilhagens por Mouros e Normandos. Certamente que esta comunidade «familiar» não seria muito numerosa. José Mattoso apresenta uma média de apenas oito religiosos por mosteiro(24), de acordo com o rarefeito povoamento daqueles tempos. A lista de confirmantes, e de testemunhas da primeira carta de doação referida fornece-nos 2 «confessos» e 6 presbíteros, a segunda carta 1 mestre, 2 presbíteros, 1 clérigo e 1 irmão legislador. O património do mosteiro, disperso pelos lugares de Pinheiro, Godim e Azevedo, por «villas» junto ao Douro, na área de Noeda e pela Quintã, permite-nos estimar, pelo menos, seis núcleos de povoamento em Campanhã, partindo apenas dos documentos citados (1058 e 1072). O mosteiro, património de gente leiga, mas nobre, constitui um elemento de integração vertical na comunidade. Assegurando prestígio local e vantagens económicas, mantinha-se sempre que possível na família, interessada em lhe multiplicar os bens. Em 1100, o mosteiro, de novo apenas denominado de «Santa Maria de Campanhã»(25), recebe de Paio Gonçalves parte das suas propriedades, reservando outra parte ao Mosteiro de Moreira (Maia)(26). Entre os confirmantes figura Garcia Gonçalves, irmão do doador, e cujo paço aparece como limite oriental do couto que D. Teresa faz, em l120, ao bispo do Porto, D. Hugo. Garcia Gonçalves, na linhagem estabelecida por José Mattoso, atrás referida, surge como sobrinho-neto do abade Gomes, proprietário do mosteiro de Campanhã (e também de Cete) e filho de Gonçalo llaupariz, defensor do mesmo mosteiro. O paço que possuía em Campanhã, enquanto local de residência de «pessoa nobre e honrada», acumulava o significado de local onde se pagavam direitos ao senhor(27). José Mattoso identifica o «pallatium» com o centro dos antigos domínios ou «villae», distinguindo-se de «quintana», centro dos mais recentes domínios dos presores(28). Estes dois centros, o «paço», em Contumil, e a «quinta», em Noeda, curiosamente referidos na documentação medieval de Campanhã, mereciam uma tentativa de localização mais precisa. No século XII, Santa Maria de Campanhã deixa de ser referido como mosteiro e aparece sempre como igreja, destino corrente para os pequenos mosteiros familiares que proliferam na centúria anterior e que, ou se integram nas grandes ordens religiosas, de futuro mais estável (como S. Cristóvão de Rio Tinto na ordem beneditina), ou desaparecem simplesmente como mosteiros. Avançara-se na organização eclesiástica: a investidura de D. Hugo na Sé do Porto constitui um marco dos novos tempos. (1) Freguesias da Diocese do Porto. Elementos onomásticos Alti-medievais. II Parte. Boeletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, Porto, 2,< série, vol. 2, 1984, pág. 28 e seg. (2) «Carta donacionis sicut et facio de hereditate mea propria qui habeo in villa sumlani et baquini subtus alpe moas gundemari discurrente ribulum campaniana propre fluvio daria territorio portugal».Portugaliae Monumenta Historica, Diplomata et Chartae, vol. I, fasc. I, Doc. CLXX pág. 105. (3) PMH, D-C- vol. II, fasc. II, Doc. D do ano de 1072, pág. 78. (4) Os Calaicos, unidade étnica menor dos Brácaros, habitantes da Calaecia, a norte do Douro, entre a Sena de Valongo e o rio Sousa, ter-se-ão distinguido, com os Lusitanos, na resistência contra os Romanos. Amando Coelho Ferreira da Silva, Aspectos da Proto-História e Romanizarão no concelho de Ria Nova de Gaia..., Gaya II, 1984, pág. 39 a 58. (5) Carlos Alberto Ferreira de Almeida, 0 Documento R.° 13 dos Diplomata et Chartae. Duas considerações. Lucerna V, Porto, 1966, pág. 638. (6) José Mattoso, «Identificação de um País. Ensaio sobre as origens de Portugal 1096-1325, vol. II Lisboa. Ed. Estampa, 1985, pág. 181. (7) PMH, D-C- N.° 420, pág. 262. (8) Freguesias da Diocese do Porto.,., Porto, 1973, pág. 156 e 157. «ad portum durio inter rivulo et sanctu martinu villa sancta maria [Campanhã] ex alia parte durio ville clivaria». T.T. Mun, fl. 37.Cita o Padre A. Tavares Martins, «A Paróquia de Santa Maria de Campanhã», (Subsídios para uma Monografia), pág. 7: «É mesmo tradição que, antes da actual igreja, houve uma primeira Matriz, no monte de S. Maninho, que era ao norte dá aldeia de Maceda». (9) «Campaniana.., ecclesia vocabulo sancti mameti». Arquivo Distrital do Porto, L. Test. fl. 15. (10) PMH D-C. 542, pág. 330. (11) Carlos Alberto Ferreira Almeida, 0 Documento..., Lucerna, V, pág. 638. «A região de Campanhã, compreendendo Campanhã e Rio Tinto» (...). «Arquitectura Românica de Entre Douro e Minho», vol. I. Dissertação de Doutoramento em História dec. Arte, Porto, 1978, pág. 40. (12) Alberto Sampaio, Estudos históricos e económicos, vol. I, pág. 59. (13) Ibidem, pág. 515 (14) Ibidem, pág. 53 (15) Ibidem, pág. 66 (16) C. A. Ferreira Almeida - Vias Medievais I - Entre Douro e Minho. Dissertação para Licenciatura em História. Fac. Letras Porto, 1968, pág., 53-55. (17) PMH, D-C. 409. (18) Carlos Alberto Ferreira de Almeida, «Vias Medievais I- Entre Douro e Minho, pág. 215. (19) Biuere, bebida? (20) Godim, genitivo de nome de pessoa Gutinus, ampliação com o sufixo - inus de Goto, Godo, Goda. Joseph M. Piel, «0s Nomes Germânicos na Toponímia Portuguesa I. Imprensa Nacional de Lisboa, 1936, pág. 141 a 146. (21) Permanecem topónimos em Campanhã como Vessada e Roteia, (22) PMH D-C. 500 (23) José Mattoso, «A Nobreza Medieval Portuguesa», a família e o poder, Editorial Estampa, Lisboa, 1981, pág., 238-244. (24) José Mattoso, «Le Monachismc ibérique et Cluny. Les Monastéres du diocése de Porto de l'na mille à 1200». Louvain, 1968, pág., 160. (25) Documento original, de Agosto 1100, ainda inédito, do mosteiro de Moreira, mas procedente do maço 36 do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Documentos Medievais Portugueses, Documentos Particulares Vol. IV, tomo I, Lisboa, MCMLXXX., pág. 121-122, nota d). (26) A família está muito ligada aos senhores de Moreira, da mesma categoria social. Elvira Gonçalves, educada («criada») junto da condessa Ilduara Mendes, dela recebe como presente de casamento com Gonçalo Guterres uma propriedade («villa») em Compostela (S. Cosme, Gondomar). Como linhagem autónoma, a família desaparece, por casamentos dos ramos femininos na família de Moreira. José Mattoso, A Nobreza..., pág. 240. (27) Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, «Elucidário das Palavras, Termos e Frases, Livraria Civilização, 1966, Vol. II, pág. 460. (28) J. Mattoso, «Le Monachisme...», pág. 245. |