5 CARTAS DE DOAÇÃO DO «DIREITO DE PADROADO» Como já anotamos, a igreja de Santa Maria de Campanhã, em 1258, é propriedade de um leigo, pretor, D. Mendes Extrema. É, sem dúvida, uma personagem de importância regional, dado o reencontrarmos como proprietário, no mesmo ano, da igreja de S. Cosme de Gondomar e doador, assim como os seus filhos, à Ordem do Templo, de vários casais na zona de Valbom. Como proprietário da igreja, é muito provável que Mendes Extrema pertença à família fundadora do mosteiro de Campanhã. Observamos já que a partir de 1120, desaparece a designação de mosteiro, substituída pela igreja de Santa Maria de Campanhã. Continua, não obstante a alteração, a pertencer à mesma família o direito de indicar o nome do pároco, que apresenta ao Bispo de Porto, para ser confirmado. Aquele direito, como património, passava de pais para filhos e era passível de venda, doação ou troca. Compreende-se que, pela multiplicação do número de herdeiros, coubesse apenas a um deles, proeminente por uma ou outra razão, a prática de, por assim dizer, representar o conjunto da família. É possível que seja a situação referida nas inquirições de 1258, nas quais a indicação daquele único proprietário, remeterá tão somente para a informação de base: Santa Maria de Campanhã não era igreja do padroado real. 0 número exacto dos que exerciam o direito de padroado leigo não estaria nos objectivos da inquirição. À medida que aumentava o número dos patronos, naturalmente se iria diluir o prestígio que a ligação à igreja acarretaria à família. Enquanto a ligação evidente, é de presumir que as famílias tentassem prolongar no tempo o estatuto de patronos. No entanto, à diluição de direitos implicada na multiplicidade dos proprietário vem somar-se uma outra linha de evolução, porventura bem mais influente. É que a centralização que se estava operando a nível do bispado, a reorganização da diocese do Porto, passava também pela transferência de direitos particulares para a Sé Portucalense. Este processo de transferência do padroado Igreja de Santa Maria de Campanhã prolongou-se por gerações. É entre 1227 e 1302 que a Mitra do Porto se vai apoderando do direito padroado, que obtém por doação dos herdeiros(1), numa fórmula que, por repetida, não deixa de ser esclarecedora: «dou, doo e concedo todo o direito Padroado que tenho e devo ter na Igreja de Santa Maria de Campanhã (...) remissão dos meus pecados e por amor ao nosso bispo e aos nossos pai seguindo-se ameaças aos descendentes que se atrevessem a pôr em causa a doação especificando-se sempre a quantia a pagar por aqueles que viessem a incomoda Igreja sobre a legitimidade da doação: «seja maldito neste mundo e no outro, e com judas traidor seja metido no inferno». Fica igualmente claro que a doação é feita de livre vontade: «não constrangida nem obrigada por nenhum homem ou mulher, mas de minha livre e grata vontade estando em meu entendimento» (2). Estas fórmulas, com ligeiras variantes, repetem-se nas 50 cartas de doação, incluídas no Censual do Cabido da Sé do Porto Este conjunto poderá não estar completo. Nele não encontramos referência ao senhor Mendes Extrema ou a descendentes seus. Não conhecemos cartas de doação entre 1231 e 1288, o que constitui um hiato que não pudemos interpretar. A concentração máxima das doações verifica-se 1229 e 1230, no tempo do bispo D. Julião, que obtém 72% do total das doações. Analisar o conjunto documental formado pelas 50 cartas é um desafio interessante na sondagem do passado de Campanhã. No entanto, julgamos não ser possível extrair conclusões de um conjunto de dados tão reduzido. Eventualmente, a informação que fornece poderá vir a ser discutida a partir de dados provenientes de outras fontes ou, sem dúvida, poderá ser comparada com cartas de doação de direitos de padroado de outras igrejas. Que elementos compõem as cartas de doação? Constantes, apenas a data, o nome do doador ou doadores e o objecto da doação: os direitos sobre a Igreja de Santa Maria de Campanhã. Elementos variáveis serão relações familiares (a filiação, a descendência, os irmãos), o nome do cônjuge, a indicação da ocupação ou cargo, de lugares, a identidade do bispo a quem a doação é feita e ainda a relação das testemunhas, para as quais a informação pode ser muito incompleta. Os Quadros 1 e 2 procuram organizar este conjunto de informações sobre doadores e testemunhas, respectivamente. Distinguem-se nesses quadros os dois períodos da documentação (1227-1231 / 1288-1302) para permitir eventual comparação com dados provenientes de outras fontes, como atrás se disse. Que problemas são sugeridos pela análise, mesmo sumária, destas cartas? Em primeiro lugar, parece-nos que a transmissão dos bens familiares não se faria ainda por linhagem. Tal como acontecia com a propriedade fundiária, os direitos são herdados igualmente por todos os filhos do casal, rapazes e raparigas. E assim é que, em 1227, os irmãos João, Estevão, Elvira e Sancha Martins, aparecem conjuntamente a doar os seus direitos enquanto netos de Pedro João (3). E ainda em 1298, o «miles» ou seja, o cavaleiro de Erossa chamado João Lourenço e suas imãs Margarida Peres e Urraca Mendes, filhos de Maria Domingues e Mem Peres de Monte Longo aparecem como doadores em três cartas distintas (4). Um segundo tema a explorar, recorrendo a outro tipo de fontes, tem a ver com as formas de tratamento utilizadas. No total de 60 doadores, 27 são mulheres, 9 das quais recebem o tratamento de Dona («Domna» de «Domina», senhora). Parece que seria pouco significativa a forma de tratamento enquanto elemento de distinção na hierarquia social. Em 1301 a filha de Dona Maior é somente tratada por Maria Martins, de Baguim(5). Ou, em 1230, Sancha João, casada com Dom Afonso Rodrigues, filha de João Pedro «cavaleiro novo» (6). Pode tratar-se de ascensão social pelo casamento, ou a fronteira entre os grupos não passa pela forma de tratamento, o que nos poderia sugerir uma época de mobilidade social acentuada.
a) Quatro dos quais são doadores. b) De Pedroso (Lacuna), Beiriz, S. Cristovão de Braga, Paço de Sousa, Campanhã, Cedofeita... c) Santo Tirso, Randufe, Alcobaça, S. João de Tarouca... d) De Guimarães. e) De Santarém, de Montalegre. f) De Valladolide, da Terra de Faria... g) De Santa Eulália de Beiriz (Veeriz). No grupo de 33 doadores, o tratamento de Dom («Domno») é aplicado apenas a D. Mendes Soares e D. Estevão Pedro(7). Ora, também para os doadores, o critério de aplicação da forma de tratamento não parece ser uniforme. Recolhemos também um exemplo: o cavaleiro Pedro Homo, filho de Martins Frayam, é doador, em 1298, com seu irmão o clérigo Afonso Martins(8). No mesmo ano, aparece como D. Pedro, dito 0mo, na carta em que é doador o seu filho, Dom Estevão Pedro(9). Evocamos épocas com quadros mentais em que dominam outros valores que não a uniformidade, ou rigor. Em terceiro lugar, quem são os doadores? Predomina o grupo dos «miles» ou cavaleiros. Ditos apenas «cavaleiros», sem outra indicação, ou seguidos da designação de lugar: Loyoni, Alvim, Riba Vizela, Monteroso, Cassali, Santa Maria, Erossa (dois irmãos), Mouriz (também dois irmãos). 0 predomínio dos cavaleiros entre os doadores é reforçado pelo facto de 9 doadoras a eles estarem ligadas por parentesco (filhas, irmãs) ou por casamento. Também irmãos ou filhos de cavaleiros, encontramos membros do clero. 0 grupo das testemunhas, bem mais alargado, possibilita acedermos a um leque de ocupações mais completo. Estão presentes, como testemunhas, os cidadãos do Porto, os «vizinhos» de Guimarães (e também um tendeiro); a hierarquia dos «homens do bispo»: o mestre decano, os cónegos, os clérigos, os presbíteros, o porcionário, o porteiro ou simplesmente, «homo episcopi», «serviens» do bispo, mas também, por fim, o «serviens» de um cónego da Sé do Porto. Destaca-se igualmente a presença de um cónego de Viseu e dos abades dos mosteiros de Pedroso, Cete, Paço de Sousa, de Beiriz Lacuna (Lagoa), do reitor de Santa Eulália e dos monges de S. João de Tarouca, de Santo Tirso, de Pedroso, de Paço de Sousa... e Valladolid (Vallis 0lleti). Também, como testemunhas, encontram-se quinze cavaleiros (dois dos quais são doadores), de Montalegre a Santarém. Uma testemunha, Fernando João, mouro, citado imediatamente antes de vários «cidadãos portucalenses» revela-nos a relativa integração social que os mouros teriam atingido no século XIII(10). Uma outra testemunha, de Santarém, Vasco Nunes, «avogado» remete-nos para a emergência de especialistas do direito fora dos quadros eclesiásticos, em articulação com a crescente complexidade da administração régia. 0 documento é de 1302 (11). Uma carta de doação do direito de padroado da Igreja de Santa Maria de Campanhã. Conhoscam todos quantos este stromento uirem e leerem e ouvirem. que eu Ruy paaez bugalho com consentimento e com outortgamento ma mha molher 0rraca ann. dou e doo e outorgo pera todo semper todo o padroado e todo o dereyto e toda a posse e possessom e todo semiço e semidoem em que eu ey e devo aauer de dereyto e de ffeyto na Eigreia de Santa Maria de Campanhaan do Bispado do Porto e en todo o seu Couto e en todolos seus cassaes et possessioes e herdamentos de ssa Eigreia ao honrado padre e senhor Dom Giraldo pela graça de deus Bispo do Porto e aos Bispos que despos'ei ueerem a essa see do Porto éni solamente E todo dereyto e toda a posse e toda Iurisdiçom e todo Ius lambem dapressentar come de poussar e de comer e de testamentos come doutra serdoem e dentro semiço eforo e çenso e pensso e que quer aI que eu e meus sucessores hij auemos e depois podiamus e deueriamus a quer. lambem de dereito come de ffeyto na dita Eigreia e no seu Couto e nos seus cassaes e posseioes e en todalas outras coussas e perteenças dessa Eigreia de Campanhaan donas e outorgoas conpridamente e livremente ao dito Bispo e a seus successores e todalas coussas de susso ditas e partomelhe ende e ponhoo todo em esse Bispo pera todo semper que eI filhe e receba e aia todo pera seus sucessores pera todo semper E esta faço a honrra de deus e de santa Maria ssa Madre E por remjmento de meus peccados e asinaadamente per rrazom da pessoa do dito Bispo e por Amor que lhe ey E eu dobredita 0rraca ornes Iouuo e outorgo a dita doaçom e todalas causas que enellas som contheudas. En testemonho da qual coussa ffezemos ende ffazer ao dito Bispo este stromento de ffrancisco marfins tabaliom de Santarem. ffeito o estromento. Vijnte e huum dia doutubro da Era de MiII e trezentos et quareenta anos os que presentes fforom Rodrigues aries tabelliom e ffemam rroarigues Caualeyro filho do dito Ruy paeez bugalho e Martim marfins sardinha Caualleyro e vaasco nutriz Auogado. e ffemam uaasques clerigo do dito Bispo e Iohanne meendis E eu ffrancisco marfim publico taballiom de Santarem a rrogo dos ditos Ruy paeez bugalho e de 0rraca aries a esta doaçom e a outorgarnento dela pressente ffoy e este stromento ende com mira maao propria screuj e em ele meu signal pugj em testimunho desta coussa e de verdade. (...) Finalmente, notemos, sobretudo entre 1288 e 1302, a dispersão geográfica dos patronos de Santa Maria de Campanhã: ou por força da inserção no clero secular (Alcobaça por exemplo) ou também, por força dos laços de casamento no interior do grupo dos cavaleiros. (1) Conjunto de 50 cartas de doação do direito de Padroado da Igreja de Santa Maria de Campanhã, in Cansual do Cabido, pág. 8I a 139. (2) Ibidem, pág. 91. (3) Ibidem, pág. 81 e 82. (4) Ibidem, pág. 130, 133 e 134. (5) Ibidem, pág. 136. (6) Ibidem, pág. 118. (7) Ibidem, pág. 85 e 129, respectivamente. (8) Ibidem, pág. 131. (9) Ibidem, pág. 129. (10) Ibidem, pág. 127. (11) Ibidem, pág. 139. |