(continuação)

Quanto ao linho, a sua preparação e tecelagem, como aludimos a propósito do topónimo Tiraz (Tirares), far-se-ia como trabalho doméstico, feminino, espantosamente perene, visando o auto-consumo e, também base de rendimento.

A tecelagem de seda, o Inquérito Industrial de 1881 situa-a na Rua do Bonfim, em fábrica de Gonçalves de oliveira Torres, recorrendo a nove «aparelhos».

Desconhecemos a proveniência da matéria prima utilizada. Em 8 de outubro de 1836, a Câmara de Campanhã recebia uma recomendação da Câmara Municipal do Porto no sentido de se incentivar no concelho a formação de viveiros e plantio de amoreiras para a criação do bicho-da-seda (7).

A produção de fio de algodão está atestada pela fábrica, também no Bonfim, de José Carneiro de Mello, que também produzia, em pequena escala, tecidos de linho.

«0 de Carneiro de Mello, na ma do Bonfim, possue uma locomovel de Pantim da força de 8 cavallos que move:

1 pequena esfarrapadeira,

1 carda ou cadurça para baetas e cobertores,

5 dobadouras de madeira com 220 carretos,

1 urdideira de teia, e

5 torcedores com 300 fusos.

Manualmente funccionam 8 urdideiras. A fabrica não tece, dá as teias a tecer, fóra, a 280 teares que na maior pane são propriedade do fabricante, e dos quaes 50 estão fora da cidade e 230 dentro d'ella. As condições em que estes teares trabalham para a fabrica já as expusemos antes. Na fabrica, porém, tinge-se, branqueia-se, torce-se. 0 dobrar é tarefa de mulheres que recebem a 95 reis por maço de 10 arrateis, obtendo uma féria semanal de 1$000 a 1$800 reis. Para o branmqueamento ha 3 tanques, para a tinturaria um moinho de anil, 5 caldeiras com fornalhas, 16 domas de anil e 8 tinas de Côres.

0 pessoal total da fábrica compõe-se de 68 operarios sendo 34 homens, todos maiores, e 34 mulheres, - 12 de doze a dezoito annos, 22 acima de 18. Não ha rapazes. Os salarios dos homens regulam entre o mínimo de 400 e o maximo de 600 reis, e o das mulheres de 200 a 220 reis: salarios relativamente elevados e cuja acção benefica era facil observar no aspecto e na limpeza do pessoal. As declarações d'este sympathico industrial, antigo operario tecelão, vém em abono d'uma opinião geral e indiscutível - de que os salários baixos são os mais caros, pela menor produtividade da hora de trabalho. Não se observa aqui a oscillação de que tantos se queixam: o pessoal aprende, conserva-se, e ha empenhos para preencher qualquer vaga que se dê.

As férias semanaes, incluindo o pagamento aos operarios de casa, aos tecelões e dobadeiras de fóra, regulam entre 700 e 800$000 reis.»(8)

Destaquemos a referência à população domiciliária. «A estrutura industrial do Porto caracteriza-se pela estreita articulação entre o trabalho manufactureiro e o oficinal e doméstico» (9), interdependência que se vai manter por todo o século XIX.

O citado Relatório de 1881 descreve assim a situação na zona oriental da cidade :

«Só as 3 freguezias do Bonfim, Paranhos e Campanhã tem 2:767 fogos e d'estes sem dúvida duas terças partes são lambem oficinas de tecelagem, isto é, famílias que vivem do salario d'essa industria. Dando em média de 2 a 3 teores a cada oficina, porque algumas ha com lo, 20 e até 35, havendo muitas com 6, 5, 4, e sendo grande o numero de teores isolados, obtemos em numeros redondos 6:000 a 7:000 teores nas tres freguezias referidas. 0 que resta no bairro oriental e o que ha no occidental representam 3 a 4:000; e cremos que o numero de 10:000 computado não se afastará muito da verdade. Avaliando cada tear d'estes, com os seus accessorios (dobadouras, canellas, etc.), em 10$000 reis, porque são apparelhos de madeira rudimentares e mais ou menos arruinados, attingirnos o capital de l00 contos que elevaremos a 120, porque ha offingimos o capital de 100 contos que elevaremos a 120, porque ha officinas maiores em que a casa não é já o domicilio, mas sim um annexo ou dependência d'elle.

Como em todas as pequenas industrias, o valor do producto é muito superior ao do capital immobilisado, mas não deveremos calcular aqui o valor das fazendas que sabem dos teores porque ellas são em parte fabricadas com o fio das fábricas estudadas antes. Se o fizéssemos, apareceria uma duplicação importante. Cada tear produz em média 2 peças ou 64 metros de baetas, ou peça e meia ou 48 metros de cotins e riscados, em cada semana. As primeiras regulam por um terço, os segundos por dous terços. Assim a produção total excederia 800:000 peças, quantia que reduziremos d'um terço para attender ás interrupções por doenças e outros motivos. Digamos pois 500:000 peças das duas especies, cujo valor venal é de mais de 3:000 contos. Não admire este algarismo, pois um dos fabricantes cujo estabelecimento visitamos, como vamos dizer, tem em actividade cerca 300 teores que lhe produzem de l00 a 120 contos. Mas dos 3:000 contos orçados é mister reduzir, como dissemos, o valor do fio, em grande parte produzido no paiz e até no districto. 0 fabricante a que aludiarnos ha pouco (José Carneiro de Mello) consome ao antro 20 a 25:000 maços de fio nacional e 60 toneladas de rama que importa e dà a fiar, manualmente, ás fiandeiras da Maia. Todos seguem o mesmo processo, porque a fiação manual do n.° 0 applicada para tecidos grossos de peito é melhor do que a mecanica: dá um tecido mais leve. Pesando os 20 a 25 mil maços l00 a 125 toneladas, que as fiações vendem por 40 a 50 contos, valendo as 60 toneladas de rama 15 a 20 contos, e sendo 300 proximamente os teares que consomem estas quantias, podemos orçar em 1:300 a 1:400 contos o valor do fio já fabricado no paiz e que entra como materia prima da tecelagem manual. 0 argumento de produção fabril que esta representa é pois de (3:000 - 1:300 a 1:400) 1:600 ou 1:700 contos de reis ao antro.

Ao numero de .10:000 teares corresponde o numero aproximado de 30:000 pessoas. Toda a família do tecelão vive do tear. 0 pai e os filhos maiores tecem, as crianças enchem canellas, as mulheres fiara e dobam. Que o operario compre o fio e venda o tecido, ou que trabalhe por tarefa e por conta do fabricante, o resultado vem a ser o mesmo, sob a forma de lucro ou sob a forma de jornal. Os mais activos, mais económicos e mais felizes formam pequenos nucleos de officinas em que tem companheiros seus trabalhando por tarefa, e n'esse caso comprara o fio e vendem o tecido. Os mais pobres trabalhara sós por conta do fabricante. Á maneira que um dos primeiros vai enriquecendo, vai abandonando o trabalho, multiplicando as officinas que lhe dão lucros mais commerciaes do que propriamente fabris.»(10)

«Opinião oposta expendia, em 1849, o Relatório Geral do Jurado da Exposição da Industria» :
«E esses productos obscuros do pobre, cuja producção se não regula pela medida do capital, privados como foram do auxilio dos grandes motores, e do beneficio da baratesa que estes conferem a qualquer fabricação, - desherdados como se achara de todas as vantagens do trabalho colectivo, e sujeitos a todos os inconvenientes do trabalho isolado, - esses productos obscuros do pobre com todas as suas condições de inferioridade venderam-se, vendem-se, a um preço mais baixo que o dos productos análogos ou similares, que sabem as grandes fabricas!»

Impedindo a concentração industrial o sistema portuense retirou ao operário não só meios técnicos mas também capacidade organizativa. Assegurar níveis salariais e condições de produção tomava-se inviável com a dispersão e a falsa autonomia da produção domiciliária.

A abundância de mão-de-obra e o seu baixo custo relacionam-se com a participação de toda a família no trabalho de tecelagem: instalado o tear em qualquer recanto exíguo, abrange a mulher, os filhos, as irmãs...

O Padre Tavares Martins faz-se eco da transformação que a pequena indústria independente terá sofrido face à industrialização e consequente proletarização da freguesia. Situa tal movimento depois da guerra de 1914-18. Articula a próspera actividade dos «pequenos industriais» com a urbanização da Rua de S. Roque e a industrialização com o advento de profissões novas, como a dos «debuxadores», «afinadores», e toda a gama variada de tarefas preenchidas por mulheres, que, por terem «o salário de um pataco, foram designadas pelo povo como pataqueiras» (11).

«Em Campanhã, foi muito grande a evolução destes «teares» e a «indústria» de tecidos de algodão tomou-se tão caseira que se encontravam teares em quase todas as casas da Rua do Falcão, na ruada Igreja, em S. Roque da Lameira, na Viela das Moucas, no lugar de Maceda, em Azevedo, em S. Pedro, em Contumil, etc., etc., contando-se or mais de duas ou três centenas de teares, espalhados por casos particulares e que, ao tempo, compravam o algodão num armazém de fio da ma de S. Roque e no Ilhéu» (12).

Segundo o Padre Tavares Martins, existiram no princípio do nosso século três fábricas com teares mecânicos.

Recordemos que em 1836 estavam recenseados 68 «fabricantes», 23 dos quais na Rua do Bonfim.

Neste grupo, poderiam estar incluídos os ourives-fabricantes. Pinho Leal, no seu «Portugal Antigo e Modemo», aponta como actividades a merecer destaque, em Campanhã, a de artefactos de ouro e prata, como os trabalhos de filigrana e também o trabalho de marceneiros muito especializados, os «ensambladores».

Ainda o Padre Tavares Martins publica a notícia de um documento de 1799, em que o ensamblador, da aldeia de Azevedo, Manuel António Ferreira, se recusa, por morar dentro dos limites do couto de Campanhã, a pagar portagem de duas cadeiras de pau preto que mandava para a cidade.

O cónego administrador dos direitos de portagem, por parte do Cabido, dera ordem de apreensão e embargo. Este foi dado por improcedente na Relação do Porto, provando-se que o referido ensamblador era «vizinho da cidade», segundo o item 57 do Foral.

Em 1836 são arolados, como notamos, 14 ensambladores e 35 carpinteiros.

Relativamente a produções ligadas à construção civil, fizemos já referência à fábrica de cal de José de Almeida Celorico, em Rego Lameiro, atingida pelas duras circunstâncias do Cerco do Porto, nos anos de 1832 e 1833, o Inquérito Industrial referencia duas fábricas de cal branca em Campanhã: «Além dos fomos do ouro, ha apenas dous no lugar da Quinta da China subúrbios de leste. As informações acerca de um servem para o outro, pois a sua importância é semelhante.

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Dois raros fornos cerâmicos em forma de garrafa da Segunda metade do século XIX, salvos aquando do início das obras da nova ponte ferroviária
.«O Tripeiro» Série Nova Ano IV n.º 2

Disse-nos Manuel Martins da Rocha, dono, que queima cal da Figueira, fazenda ao antro 10 fornadas, gastando, como combustível, 3000 molhos de Urze que vale de 320 a 600 reis o cento de molhos. Occupa 3 homens e cada fornada produz 10 000 kilogramas de cal no Porto, pago o transporte desde o forno, que é de 600 reis a carrada.

Queixou-se do abatimento da indústria, declarando o propósito de apagar o forno, e denunciou, como causa determinante, a concorrência da cal que vem de Mogofores, pelo caminho de ferro, já preparado»(14).

Seguindo ainda o quadro 7, salientemos a indústria de curtumes. Apontam-se as fábricas de António Domingos de oliveira Gama, na ma do Bonfim, de Julião de Freitas Guimarães, transferida em 1880 do Esteiro para Valbom, a de António José Mendes Sampaio, na Lameira, todas produzindo sola e ainda António Rodrigues Ramos que, em S. Roque da Lameira, produzia pelicas. No curtimento empregava-se a cal e a casca (de carvalho, geralmente), durando o processo de quatro a seis meses (curtume líquido), relativa inovação face ao processo tradicional (o «encasque» que durava um ano).

Se os mestres conservadores se queixavam que do processo modemo resultava a quebra da qualidade do produto, delineavam-se mercados distintos : do 1.° processo resultava uma sola leve, preferida na cidade, do 2.° resultava uma sola mais rija e pesada, preferida na província.

Na fábrica do Bonfim, em que havia 2 máquinas a vapor com a potência de 20 cavalos (locomovel Pantin cujo combustível era a própria casca da curtimenta), o esgoto dos tanques e o bater da sola já eram efectuados mecanicamente. Lá se preparavam anualmente de 18 a 20 000 couros.

Nas outras duas os moinhos de casca eram movidos a bois e as tarefas de esgoto e de bater a sola eram manuais. Produziam 5 000 couros/ano no Rego do Lameiro e 9 - 10 0001ano em S. Roque.

«A condição dos operários é infeliz nesta como em todas as indústrias elementares. o salário regula por 300 reis ao dia d'um trabalho violento e repugnante. Em algumas fábricas usam-se tarefas (...) Nenhum operário sabe ler, e em geral vem do campo «porque a gente da cidade não atura isto», disse-nos um mestre. os próprios mestres são analfabetos.

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Como matérias primas, a casca é nacional, vindo porém alguma de Espanha pelo Douro; os couros são geralmente do Brazil: apenas as fábricas 3 [Bonfim] e 10 [Bessa e Cardoso, nas Condominhas], compram as peles do matadouro da cidade, por poderem comprar a matéria-prima a dinheiro» (...) Estas «avassalam o mercado, tendendo a monopolizar o fabrico» (16).

A actividade de peliqueiro estava representada, na Relação de 1836, por um só artífice, na Rua do Bonfim.

«Em 1881 António Rodrigues Ramos, estabelecido em S. Roque da Lameira, «prepara apenas pelicas e carneiras; tem 12 tanques e emprega 5 homens. A produção orça por 2000 dúzias de peles (17).

Também a indústria de curtumes apresentava antecedentes em Campanhã. Em 1785 Manuel Simões, morador na Rua do Souto, funda na Quinta de Arcaria, no Casal de Baixo, uma Fábrica de Atanados. Usava «ir à praia do Rio Douro buscar as fazendas em carros para isso alugados, pelo caminho do Esteiro»(18).

Em 1796 os lavradores proprietários das terras que o caminho atravessava resolvem retirar a servidão de carros «na formalidade antiga, em cujos. termos fica a fábrica dos Suplicantes danificadíssima».A questão resolveu-se a contento, por intervenção de Francisco de Almada e Mendonça. Tempos de redefinição dos domínios público e privado, de direitos individuais e colectivos, como atrás aludimos.

Prosseguindo a análise do quadro n.° 7, anotemos o que se refere à Destilação. Dos 4 estabelecimentos suburbanos do Porto, um localizava-se na antiga saboaria do Freixo. «0 proprietário da destilação de Campanhã, por (...) expulsou-nos da fábrica no momento em que a observávamos, esperando-o. Assim, as notas colhidas acerca deste estabelecimento são apenas aproximadas. (...) Ingenuamente, o dono da fábrica de Campanhã nos disse que não deixava ver a sua fábrica porque não queria pagar mais impostos, confessando assim não pagar os que devia; (...) um dos lucros das fábricas extra-barreiras consiste em meter aguardente no Porto, por contrabando, fugindo ao pagamento do real-d'água, teremos os motivos ilícitos da reserva e até da grosseria inconveniente do alemão Peters». «0 regime de trabalho é n'esta indústria de importância secundária, já pelo relativamente pequeno número de braços que demanda, já pela natureza de aptidões que requer. No máximo número, os trabalhadores são carregadores braçaes os mexedores das domas. Evidentemente não há instituições de ensino nem de socorros, e na sua quasi absoluta totalidade a gente é analfabeta».

«Distillam o malt de cereaes fermentados, milho quasi exclusivamente e vindo dos Estados-Unidos na sua máxima pane» (19).

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A saboaria localizada em Campanhã, no Rego Lameiro, entre cinco referidas em 1881 no distrito do Porto, pertencia à firma Martins & Alexandrino. Empregava seis homens, orçando o salário em 350 reis diários, em 12 horas de trabalho efectivo. «0 sabão fabricado é todo em barra, não se fazem sabonetes nem espécies finas; o rosa e o azul são tintos raiados, o gordo é amarello, e além d'estas espécies vendem-se, em porções pequenas, os restos do fabrico no estado pastoso, ou sabão mole» (20).

A localização extra-barreiras era preferida com o intuito de fugirem ao pagamento de direitos sobre o azeite, onerado em cerca de 300 reis o almode. As pequenas saboarias dentro das barreiras recorriam, em alternativa, a óleos coloniais (de palma e outros).

A comissão regista também que o pessoal das saboarias do Porto «são na máxima pane, como os donos, gallegos. Não há uma única fábrica em grande escala e os donos são por via de regra os mestres fabris».

Transcrevemos de seguida, a parte do Relatório relativa ao fabrico de fósforos de cera, também laborados em Campanhã: «A oficina de António Ventura Duarte que a sub-comissão visitou e está na Rua de S. Roque da Lameira, occupa 2 homens (300 a 360 reis) e 5 mulheres (80 a 100 reis) (...) As caixas são feitas fora da officina por mulheres que, trabalhando em suas casas, recebem 20 reis pelo feitio de cada grosa. Produzindo esta officina 30 grosas ao dia, paga diariamente 600 reis de feitios, o que equivale, a razão de 100 reis, ao salário de 6 mulheres».

E remata: «A sub-comissão por sua pane, além de reclamar medidas de polícia hygienica, protesta contra a deplorável indifferença que permite a profusão das lithographias obscenas com que vem de Itália forradas as caixas de phosphoros, e com que à imitação d'ellas se forram as fabricas nacionaes para satisfazer o gosto depravado do público.

Prohibam-se policialmente essas exhibições nojentas» (22).

A única referência ao fabrico de palitos é feita a propósito da oficina de António de Jesus, na ma de S. Roque, fabricante que também vendia directamente pelas portas e pelos preços de retalho.

Fabricava, em Salgueiro de Coimbra, em média, ao dia, 1500 e 1000 palitos, em 5 maços, de 1.ª e de 2.ª, os preços eram de 30 e 20-25 reis respectivamente(23).

Vemos assim implantar-se, sobre uma tradição manufactureira, estabelecimentos de produção já industrial, quer em sectores tradicionais na freguesia (moagem, tecelagem), quer em sectores novos (destilaria, saboaria).

Ao desenvolvimento da indústria, em Campanhã, parece não ter sido estranha a construção do caminho de ferro.

Em 1875 foram inauguradas as linhas do Minho, até Braga, e do Douro, até Penafiel, servidas pela Estação Sucursal de S. Roque da Lameira. Dois anos depois são inauguradas a Ponte medica sobre o Douro, «Maria Pia», e a Estação de Campanhã, situada nos campos de Pinheiro e Godim.

Maior ligação com as regiões vizinhas, vai trazer ao Porto numerosa mão-de-obra, grande pane da qual não se fixa nas freguesias do centro da cidade, mas em Campanhã, como que a garantir a proximidade do local de chegada, a proximidade do acesso ao torrão natal, qual cordão umbilical que fará subir em flecha a população de Campanhã no século XIX.

QUADRO 8
EVOLUÇÃO DEMOGRÁFICA DE CAMPANHÃ NO SEC. XIX
 

Anos

Fogos

População

População

Estado Civil

Instrução

Total

de Facto

Solteiros Casados Viúvos Analfabetos Ler

HM

H

M

H

M

H

M

H

M

H

M

H

M

1801 (1)

-

4051

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

1839 (2)

-

3550

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

1862 (1)

-

4191

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

1864 (3)

1026

4314

4286

2062

2224

1258

1309

731

733

83

182

-

-

-

-

1878 (3)

1542

6274

6278

3074

3204

1829

1804

1139

1156

106

244

2152

2923

194

94

1890 (3)

2338

-

9908

-

-

3098

2688

1835

1808

136

343

-

-

-

-

1900 (1)

-

12707

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

(1) Américo Costa, Dicionário Geográfico de Portugal

(2) Fr. Francisco de Prazeres Maranhão, Táboa Geográfico-Estatística Lusitana.

(3) Recenseamento da População.

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0 censo de 1890, que introduz um novo dado, a origem dos habitantes, fornece para Campanhã, a seguinte distribuição da população, segundo a naturalidade:

do concelho 1715 habitantes

do distrito 1420 "

do país 1659 "

do estrangeiro 114 " (24)

Esta população adventícia criará novas necessidades de alojamento. 0 terreno de construção atinge valores inacessíveis à massa de assalariados. Assim, paralelamente ao aumento de construção «burguesa» das típicas casas oitocentistas forradas a azulejo e ostentando artísticos ferros fundidos, adensando-se em tomo da Estação de Pinheiro, multiplicam-se também na freguesia as «ilhas» e os «pátios».

Quintais e pequenos lotes disponíveis são subdivididos até ínfimas áreas de alojamento, a alugar aos recém-chegados da província em busca de postos de trabalho no comércio e na indústria. Nestas condições, o metro quadrado atinge valores muito elevados; como denuncia Ricardo Jorge, em 1889:

«A tendencia predominante é habitar cada familia em casa separada (...) Em compensação vulgarizou-se no Podo um género especial de habitações colectivas, conhecidas pelo nome de «ilhas». Já no século passado Rebelo da Costa diz haver na Sé e Santo Ildefonso «casas que têm 15 famílias diferentes e que pela sua dilatada extensão se chama «ilhas».

Esta criação caseira do proprietário indígena prosperou e multiplicou; não melhorou por cedo de construção nem de aluguer mas piorou na acumulação, porque as que albergara dezenas de famílias. São renques de cubículos, às vezes sobrepostos em coxia de travesso. Este âmbito, onde se apilham camadas de gente, é por via de regra um antro de imundice; e as casinhas em certas ilhas, dessoalhadas e miseráveis, pouco acirra estão da toca 1%rega dum troglodita. Existem estes ruins espécimes disseminados por toda a cidade, mais frequentes no Carvalhido, Paraíso, Fontinha, S. Victor, Antas, Montebelo, Fontainhas, etc.(...)

São o acoito das classes operárias e indigentes que mercê dum aluguer usurário, pagara o seu direito de residência a preço mais subido do que ai classes remediadas.

Há no Porto 1048 ilhas com 11 129 casas, o que dá uma média de 10,6 casas por ilha.

São pois 11 129 fogos de residência, o que corresponde aproximadamente a perto de 50 mil moradores (...) Vê-se que quase metade da gente do Porto mora e acama-se nas ilhas, gerando uma acumulação insalubrérrima». (...)

«Há as habitações lôbregas e insalubrérrimas onde se amesenda mais dum terço da população; há o desgaste das moléstias infecciosas pela licença do contágio ; há enfim uma rede de incapacissimos esgotos, rastilhando o solo e a água de imundice».

«0 Porto precisa sair deste poço de insalubridade, há mais de dez anos definido e denunciado»(25).

As péssimas condições sanitárias geram graves enfermidades, como a tuberculose pulmonar.

0 muito baixo nível de salários articula-se igualmente com um regime alimentar insuficiente e pobre. 0 Governador Civil do Porto, no seu Relatório de 1859, afirma que mesmo na cidade do Porto, as «classes menos abastadas» não fazem o seu alimento ordinário de carne «e os habitantes das quatro freguesias rurais - Campanhã, Paranhos, Lordelo e S. João da Foz (...), e cuja maioria pouco, ou quasi nenhum uso faz d'este alimento»(26).

Rondando o salário médio dos operários 300, 350 reis, (quadro 7), anotemos a média anual de alguns preços praticados na cidade do Porto, no mesmo ano de 1881:

milho 25 reis o litro

trigo 30 reis o kg (barbela)

46 reis o kg (serôdio)

48 reis o kg (o da terra)

54 reis o kg (o de fora)

 

vinho maduro 90 reis o litro

vinho verde 180 reis o litro

lenha de pinho 368 reis o carro

lenha de carvalho 2152 reis o carro

azeite 206 reis o litro

come de vaca 285 reis o kg (27)


As implicações do caminho de ferro na freguesia de Campanhã são, sem dúvida, tema a aprofundar.

Registemos, finalmente, a recente tese de David Justino, entre outros, que considera o caminho de ferro um dos factores da dependência do Porto em Relação a Lisboa, cidade que, até meados do século XIX, eram polos de duas regiões distintas, economicamente autónomas: «Por diversas formas, a linha do Norte veio contribuir com a sua parte para o domínio de Lisboa sobre o território continental, elevando a capital a centro capitalista dominante, semiperiferizando o Porto e a região norte» (28).


(7) AHMP 4976 (141).

(8) Relatório apresentado ao Ex.mo. Sr. Governador Civil do Distrito do Porto, Porto, 1881, pág. 218.

(9) David Justino, «A Formação do Espaço Económico Nacional», Portugal 1810-1913, Vega, vol. I, pág. 96.

(10) Relatório apresentado ao Ex.mo. Governador Civil do Distrito do Porto, Porto, 1881, pág. 215, 216.

(11) Tavares Martins, obra citada, pág. 847.

(12) Ibidem, pág. 845-846.

(13) Ibidem, pág. 268 e 605.

(14) Relatório apresentado ao Ex.mo. Sr. Governador Civil do Distrito do Porto, Porto, 1881, pág. 376.

(15) Ibidem, pág. 98-99.

(16) Ibidem, pág. 100.

(17) Ibidem, pág. 104.

(18) Tavares Martins, obra citada, pág. 641-642.

(19) Relatório apresentado ao Ex.mo. Sr. Governador Civil do Distrito do Porto, Porto, 1881, pág. 131, 136 e 133 respectivamente.

(20) Ibidem, pág. 286-287.

(21) Relatório apresentado ao Ex.mo. Sr. Governador Civil do Distrito do Porto, Porto, 1881, pág. 329.

(22) Ibidem, pág. 329.

(23) Ibidem, pág. 329-330.

(24) Ricardo Jorge, «Demografia e Higiene da Cidade do Porto», pág. 156.

(25) Ibidem, pág. 152 e 322.

(26) Citado por David Justino, «A Formação do Espaço Económico..., vol. I, pág. 145.

(27) «Livro de Praços» da Câmara da Cidade do Porto de 1881 a 1911.

(28) David Justino, op. cit., vol. I, pág. 404.


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