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CAMPANHÃ

NAS «MEMORIAS PAROQUIAIS»

DE 1758

Com o rei D. Manuel, no início do século XVI, emerge o Estado Moderno, burocrático e centralizado.

Entre muitas outras medidas, reorganiza os forais (o foral do Porto em 1517), disciplina a nobreza através dos «livros do assentamento», institui as «comendas novas» (1514), na Ordem de Cristo, procurando criar um quadro institucional que lhe permita o controle eficaz dos senhores, laicos e eclesiásticos.

A igreja de Campanhã não terá escapado a esse processo de afirmação do poder real. Desconhecemos a data em que nela terá sido instituída a «comenda nova», na Ordem de Cristo, implicando a transferência de rendimentos para um particular nomeado pelo rei. Se, como vimos, em 1542, no Censual da Mitra, a igreja de Santa Maria de Campanhã aparece como do Padroado da Mitra do Porto, já dez anos depois passara a comenda da Ordem de Cristo, do Padroado Real. 0 sistema das comendas, frequente desde a Idade Média, sofre notável impulso com D. Manuel, e daí a designação de «comendas novas». Alcançada do Papa a reunião na sua pessoa dos mestrados das ordens militares de Avis, de Santiago e de Cristo, D. Manuel utilizava em favor da centralização real, importantes rendimentos de origem eclesiástica. «Começaram os reis de Portugal as conquistas ultramarinas das partes de África e da Índia, e com este motivo e respeito, moviam facilmente os Pontífices para lhe confirmarem por comendatários fidalgos que de cá lhe nomeavam»(1). Ao atribuir os rendimentos das igrejas a particulares, o rei, enquanto administrador de Ordens, particularmente da Ordem de Cristo, visava a retribuição de serviços, nomeadamente em territórios ultramarinos.

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Marco Divisório

Em 1552 o comendatário da Igreja de Santa Maria de Campanhã, comenda da Ordem de Cristo, é Aires Gomes da Silva. Nesse ano, o Cabido da Sé do Porto alcançou sentença favorável dos «dizimos pessoais, primícias e mais direitos paroquiais que se deviam de Noeda e todas as suas pertenças», reivindicados pelo comendatário atrás referido, provando-se pertencerem à Mesa Capitular(2).

A mesma questão volta a levantar-se em 1555(3) e 1597(4) sendo as sentenças sempre favoráveis ao Cabido, ao qual pertencia Noeda, de que recebia, por emprazamento, sessenta alqueires de trigo.

Em 1597, o comendador da Comenda de Santa Maria de Campanhã, é Brás Teles de Menezes, nomeado em Julho de 1599 capitão mor do Porto (5).

Seguir-se-lhe-á Luís da Silva Teles de Menezes, alcaide de Moura, Senhor da Lamarosa, comendador de Campanhã, na Ordem de Cristo(6).

A proliferação de comendas não deixa de revelar, de algum modo, a nova relação de forças entre o poder eclesiástico e o poder régio.

Também a Igreja-Instituição se transformará. Abalada pela Reforma Religiosa, a Igreja Romana consolida a sua posição a partir do Concílio de Trento (iniciado em 1545), cujos decretos D. João III considera Leis do Reino. Verificaram-se, enfio, adaptações profundas do Cristianismo, na sua interpretação católica, triunfante em Portugal. Não as detectamos em Campanhã.

Apontemos somente indícios. A consagração da Capela de S. Roque poderá Ter algum significado no contexto contrareformista(7).

Não sendo referido como orago no Censual da Mitra do Porto (1542), S. Roque, que viveu na segunda metade do século XIV, advogado da peste, teve grande voga no século XVI, também associado aos Jesuítas, arautos da Contra-Reforma.

A capela de S. Roque, em Campanhã, localiza-se numa importante via de acesso à cidade. Em tempos de afirmação religiosa era fundamental a cristianização de lugares de passagem, de caminhos mais concorridos, de encruzilhadas, de pontos altos. Em 1758 eram cinco as vias sacras (70 ou 80 cruzes) que, na freguesia, denotavam o fervor católico: da igreja ao monte vizinho (Monte da Bela) ; da capela de S. Roque ao monte de Maceda; da capela de S. Pedro ao Outeiro do Tine; da capela de Nossa Senhora ao Pilar (cazal de Furamontes) ao monte de Azevedo; da capela de Santo António (cazal de Contumil) ao monte de Contumil, «todas con cruzes de pedra bem lavradas» (8).

Também em lugar de passagem, referimos o Padrão de Campanhã (Rua do Heroísmo) e, ainda dentro dos limites da freguesia, até ao século XIX, a Cruz das Regateiras, local onde foi construído o Hospital Conde Ferreira(9).

Quanto à Capela de S. Pedro, «onde se diz missa de ano a ano», tinha em 1629, «mamposteiros» nomeados pela Câmara do Porto. O cargo de mamposteiro, ou seja, daquele que recolhe esmolas dos fiéis, permitia aos que o desempenhavam, o registo de tal privilégio, ficando assim dispensados de exercer outros cargos concelhios, nem sempre desejáveis (10).

Seria marcante a situação periférica da freguesia. «Lordelo, Ramalde, Paranhos, Campanhã, eram lugares distantes e escassamente povoados de uma população submissa à terra e à igreja»(11).

Escassamente povoados... Quantos seriam os habitantes de Campanhã durante o Antigo Regime? Observemos o quadro 3.

QUADRO 3

EVOLUÇÃO DEMOGRÁFICA DE CAMPANHÃ NOS SÉCULOS XVII E XVIII

 
Ano Almas Menores Total Fogos
 

Varões

Fêmeas

Total

V.

F.

Total

     
1623     525 a)     132 657 - (1)
              766   (2)
1650     2212         953 (3)
1687             1381   (2)
1732     1565 b)       1878   (4)
1758     1187     182 2169 758 (5)
1766             2580   (2)
1787 1530 1654         3184 868 (6)
1794     2343   261     1012 (7)
1799 1135 1184   164 168   2651 1028 (8)

Legenda:

a) Almas de comunhão (excluem menores de 10 ou 12 anos).

b) Almas de confissão (excluem menores de 7 anos).

(1) D. Rodrigo da Cunha, Catálogo dos Bispos do Porto.

(2) Américo Costa, Dicionário Corográfico de Portugal...

(3) Pereira de Novais, Episcopológico.

(4) D. Luiz Caetano de Lima, Geografia Histórica.

(5) Memórias paroquiais.

(6) Rebelo da Costa, Descrição da Cidade do Porto.

(7) «Informações...» manuscrito n.° 501 da B.P.M.P.

(8) Custódio José Gomes da Silva Vilas-Boas. Plano da Descrição Geográfica e Económica da Província do Minho.


Estes dados, recolhidos com diferentes critérios, não permitem o conhecimento preciso da evolução demográfica de Campanhã. Organizados essencialmente por motivos de recenseamento militar, ignoram, ou subestimam muitas vezes, a população infantil, sendo mais plausíveis os dados sobre o número de fogos. Igualmente, provindo muitas vezes a informação dos párocos das freguesias, os moradores são vistos sob o crivo dos que comungam e dos que se confessam, o que, se cobre a população adulta, numa época de dominação católica, também, daquele modo, subvaloriza a população infantil.

A diferença de critérios dos autores citados é evidente e Ricardo Jorge (12) não deixa de considerar exorbitantes os dados fornecidos por Rebelo da Costa.

Sem a crítica das fontes e a comparação com dados fornecidos por séries longas, como os registos paroquiais, disponíveis para Santa Maria de Campanhã a partir de 1587, não é possível obter conclusões sobre a evolução demográfica ao longo do Antigo Regime.

Um quadro de Campanhã, na perspectiva do seu pároco, o fidalgo da Caza de Sua Majestade, João Camelo de Miranda, é-nos traçado, em meados do século XVIII, incluindo a informação sobre o número de paroquianos.

Na sequência do terramoto de Lisboa de 1755, os párocos de todo o país são sujeitos a um inquérito cujas respostas estão compiladas nas «Memórias Paroquiais» de 1758.

Que informações fornecem ? Limites da freguesia, número de fogos/habitantes, actividades económicas, situação jurídica da Igreja, seu rendimento, lugares da freguesia, características diversas...

Em 1758, a freguesia de Campanhã, mantinha na sequência dos limites medievais, a confrontação poente com a freguesia de Santo Ildefonso no Poço das Patas (Campo 24 de Agosto), a norte incluía Salgueiros, a nascente avançava da Quinta do Freixo até ao Monte das Lagoas. Assim, são lugares de Campanhã, Reimão e Prado (Quinta do Prado, residência de verão do bispo do Porto, hoje Prado do Repouso). Na freguesia, são referidos 2169 moradores, para 758 fogos.

No perímetro de duas léguas «dispersaram-se trinta lugares ou aldeias, destacando-se Reimão, Formiga, Azevedo e S. Pedro como os mais populosos (vide mapa 3, pág. 95). Evidencia-se, deste modo, o carácter rural da freguesia, produtora de milhão e, secundariamente, de centeio, trigo e cevada «pela estreiteza das terras». «Provê a cidade do Porto» de «muito boas frutas de toda a casta e com especialidade os melões (...). Produz boas melancias, grande cópia de bolinas, abóboras brancas e pretas, pepinos, penas, maçãs, ameixas, pêssegos».

Incluídos no «termo velho» do Porto, os moradores de Campanhã estavam, por isso, isentos do pagamento de portagens.

O pároco valoriza as áreas de cultivo, «alguns campos pellas margens destes dous regatos» (...) «ambos sem nome», mas «também tem bastante arvoredo silvestre, e algumas árvores em que seus agricultores plantam e encaminham as vides para produzirem seus frutos».

Além dos agricultores ou lavradores, a «memória paroquial» apenas refere outros dois grupos profissionais. Os pescadores, que gozam de isenções fiscais desde 1593, recolhem, na estação própria, lampreias, sáveis, robalos e, por todo o ano, tainhas, camarões e enguias... Indirectamente, são referidos os moleiros, grupo importante sem dúvida, que detêm 76 rodas de moinhos das quais «recebe grande utilidade a cidade do Porto, pela provisão de farinhas para o seu sustento».

Campanhã, nos meados do século XVIII é ainda referida como área de implantação de quintas ocupadas sazonalmente por proprietários que residem no Porto: em seis importantes «quintas», do Freixo, do Prado, de Bonjóia, da China, de Pedro A. da Cunha Osório e da Revolta, apenas nesta última assiste todo o ano a proprietária. Refere também seis «Cazais»: da Bessada, de Furamontes, de Contumil, de Salgueiros, de Villa Meã, do Reimão e, por fim, Sacaes é designada como «fazenda».

A dispersão destes núcleos populacionais numa paisagem evidentemente não urbanizada permite ao pároco descrever uma realidade que, guardaria, em meados do século XVIII, as características de séculos atrás, remontando a épocas de insegurança, em que a vigilância do cimo dos montes revestia todo o significado. Assim, quando descreve os pontos altos que se avistam, situação que, em parte, ainda se mantém em nossos dias, as referências são, na margem sul do Douro, as igrejas de Santa Eulália de Oliveira (do Douro), S. Cristóvão de Mafamude, e o convento dos cónegos regrantes de S. Agostinho; na margem norte, o monte ou Outeiro do Crasto, a capela de Santo Isidoro, a Serra de Santa Luzia e, a partir de Godim, «se descobre a cidade do Porto».

A administração da freguesia referida em 1758 reflecte a centralização do poder real, iniciada séculos antes, através de instituições de controle pelo poder central. Assim, a Mesa de Consciência e Ordens, criada em 1532 por D. João III, superintenderá nas Ordens Militares, incluindo a Ordem de Cristo de que, como referimos, era comenda a igreja de Santa Maria de Campanhã, logo, igreja do Padroado Real. os dizimos pagos pela população ao beneficiário da comenda, renderiam 3500 cruzados, aproximadamente. O pároco recebia da comenda 350 000 reis e o coadjutor 12 000 reis de côngrua anual.

Perdera-se no século XVIII a memória dos litígios que tinham oposto, duzentos anos antes, o administrador da Ordem de Cristo e o Cabido acerca dos dizimos de Lueda e suas pertenças, litígios que receberam sentença favorável ao Cabido, como vimos antes. Escreve o pároco: «rendera [a comenda] muito mais se não foram nesta freguesia isentas de pagar Dizimos as aldeias ou lugares de Noeda, Quinta e Tiraz, cuja isenção é uma das cousas mais notáveis que tem esta freguesia, conforme suas antiguidades».

A comenda andava então na Casa dos Condes de Alva. Em 1758 estaria vaga por morte da condessa D. Constança Monteiro Paim, morgada de Alva, que fora viúva de D. João de Sousa e Ataíde, 1.° Conde de Alva, neto de D. Fernando de Menezes (13).

A comenda passará a D. Luís Roque de Sousa Coutinho Monteiro Paim, sobrinho neto dos 1.°s condes de Alva, e a D. Vicente de Sousa Coutinho Monteiro Paim (1805-1868) que voltaremos a referir. A criação da comenda na Igreja de Santa Maria de Campanhã, não alterou a administração da justiça, apenas transferiu da Mitra do Porto para o comendatário os dízimos percebidos na freguesia. Modificou-se, contudo, o processo de atribuição dos cargos.

O juiz da freguesia de Campanhã é «ordinário», não letrado. Comparando ao sistema em vigor no século XVI, nota-se que a eleição do juiz passou a indirecta: de três em três anos (e não anualmente) «todo o povo da mesma freguesia» elege seis homens, os quais escolhem três para servirem de Juízes e que já tivessem sido Procuradores, e outros três para novos Procuradores para servirem com os Juízes.

Em cada ano, servirá um juiz e um Procurador, após confirmação pelo prelado da Diocese «que lhe manda passar carta».

O Juiz servia também de almotacé, cujo pelouro se relacionaria com preços, aferição de medidas e, sem dúvida, impedir falsificações e contendas sobre servidões, águas, etc.

Campanhã permanecia cindida em parte coutada do Bispo, que acabamos de referir, e parte sujeita ao «Ouvidor de Gondomar, conforme suas antigas demarcações»: os moradores do lugar ou aldeia de Furamontes, alguns dos lugares de Azevedo e Contumil.


(1) Frei Leão de S. Tomás, Beneditina Lusitana, Tomo II, pág. 411.

(2) Livro 28 das Setenças do Cabido, fl. 180.

(3) Ibidem, Livro 28, fl. 186.

(4) lbidem, Livro 28, fl. 198.

(5) Francisco Ribeiro da Silva, 0 Porto e o seu Termo (1580-1640) Os Homens, as Instituições e o Poder Arquivo Histórico Câmara Municipal do Porto, 2.° vol., 1988, pág. 1028.

(6) Doutor Afonso Eduardo Martins Zúquete (dir) Nobreza de Portugal e do Brasil, Lisboa, 1961, volume 3º, pág. 465.

(7) A actual capela, construída cerca de 1734, substituiu uma ermida de invocação de Nossa Senhora da Ajuda, mas o culto de S. Roque, na freguesia, era anterior e tornou-se dominante relativamente ao primitivo orago. Padre A. Tavares Martins, «Paróquia...», pág. 102 a 106.

(8) «Memórias Paroquiais na Divisão Administrativa do Porto em 1758». Freguesia de Campanhã, «0 Tripeiro», ano VI, pág. 214 a 252.

(9) Em honra do celebrado Joaquim Ferreira dos Santos, nascido em Campanhã a 4 de Outubro de 1782, e que ilustra bem a ascensão nobiliárquica oitocentista: barão em 1842, visconde em 1843, conde em 1850.

(10) Francisco Ribeiro da Silva, «0 Porto...», pág. 680.

(11) Ibidem, pág. 185.

(12) Ricardo Jorge, «Demografia e Hygiene da Cidade do Porto». Repartição de Saúde e Hygiene da Câmara do Porto, Anuário do Serviço Municipal de Saúde e Hygiene, Tomo 1, 1898.

(13) Nobreza de Portugal e do Brasil, vol. 2º pág. 262, 263 e 335.

(continua na página seguinte)


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