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PROCESSO

DE

TRANSFORMAÇÃO DO ESPAÇO

Uma cidade não é obra do acaso, é antes o resultado de esforços empreendidos por sucessivas gerações. Ela detém marcas de acontecimentos históricos que reflectem, morfológica e funcionalmente, o que foi e é o crescimento da sua população, da sua economia.

Assim, Campanhã, freguesia integrada outrora no bairro oriental do concelho do Porto, detém um longo período de existência durante o qual se processaram inúmeras transformações físicas e sociais, responsáveis pela actual fisionomia, que a tornam tão diferente da restante área portuense.

Os contrastes no seu interior, por outro lado, revelam um processo de ocupação desigual e, como tal, deverão analisar-se os mecanismos subjacentes ao seu aparecimento, para que não só se entenda o seu contexto e funções actuais, mas também se possa prever o futuro, por forma a promover a qualidade de vida dos seus habitantes.


4.1. D0 SÉCULO XI A0 XIX

A história da freguesia de Campanhã esteve, e está, directamente ligada ao crescimento da cidade do Porto.

De facto, a expansão do núcleo citadino processou-se através da construção de vias, que daí irradiavam, com o intuito de estabelecerem ligações com a periferia, que orientaram o crescimento dos seus «arrabaldes», devorando sucessivamente o espaço rural.

Uma das primeiras referências à área oriental da cidade (além da célebre derrota do Rei de Córdova - Abderraman - perto do Rio Tinto, no tempo de D. Afonso I), data de 1058, aludindo à Igreja de Santa Maria de Campanhã, à volta da qual existiam casais dispersos em número reduzido(2).

Não sendo possível adiantar uma localização precisa para esta instituição religiosa, dada a ausência de fontes que a evoquem, poder-se-á aliar a sua implantação ao traçado de uma estrada que, no século XII, saía do coração da cidade pela porta de Nossa Senhora de Vandoma (da muralha Sueva), e no século XIV da porta de Cimo de Vila (da muralha Fernandina), constituindo a «Estrada do Pão» a que corresponde o percurso urbano da Rua Direita (Bonjardim), Largo de Mijavelhas (Campo 24 de Agosto) e Rua do Bonfim, prosseguindo através da freguesia e dirigindo-se para leste.

Em 1120 D. Teresa entrega o couto do Porto ao Bispo D. Hugo, o qual integrava os outeiros de Campanhã, onde existiram alguns prédios rústicos ligados a práticas agrícolas e rudimentares formas de produção industrial, principalmente de linho. (3)

Durante os séculos XV e XVI, o velho núcleo em expansão vai interferindo no crescimento de pequenos aglomerados, que se desenvolviam ao longo dos principais caminhos ou estradas que ligavam o centro à periferia.

Deste modo, se intra-muros fernandinos a população se preocupava principalmente em construir nas já parcas áreas livres, o mesmo não acontecia em redor onde «irradiavam caminhos de penetração para o interior, bordejados de vegetação e um ou outro edifício isolado». (4)

A confirmar estas palavras cite-se, a título de exemplo, a Quinta da Vila Meã, também conhecida por Quinta da Mitra, que conta na actualidade com cerca de 500 anos.

Propriedade de grande extensão (incluía, entre outros, os lugares da Lameira, Corujeira, Godim e Fojo), foi diminuída ao longo do tempo em favor de inúmeros empreendimentos, nomeadamente a construção da linha de caminho-de-ferro em 1875.

QUADRO 1 (5)
 

Anos

População

 

Campanhã

Porto

1623

1732

1797

657

1878

3184

18979

30024

61462

No início do século XVII Campanhã era dos lugares menos povoados da área portuense, com cerca de 657 pessoas (3,5% do total), tendo aumentado no fim do século XVIII para 3184 (5,1% do total).

Época marcada pela importância das intervenções urbanísticas planeadas, vai pôr termo, com os Almadas, a um «urbanismo espontâneo», que até aí vigorou, ligado um pouco à obediência da necessidade de espaço para uma população cada vez mais numerosa.

João de Almada(6), dirige a Junta de Obras Públicas e define, em 1784, com o Plano de Melhoramentos, as grandes directrizes urbanísticas que vão constituir na actualidade parte significativa do suporte da estrutura urbana do Porto.

Entre muitas outras realizações é feita a rectificação de velhos caminhos e outros são construídos. Para estes, e no que respeita à promoção do desenvolvimento em Campanhã, abriu-se a Rua Formosa, desde a do Bonjardim até à de Santo Ildefonso.

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Posteriormente (fins do século XVIII, início do século XIX), Francisco de Almada, continua o trabalho de seu pai, projectando o prolongamento da Rua do Reimão (actual Avenida de Rodrigues de Freitas) até à Estrada de Campanhã (Rua do Heroísmo).

Sendo Campanhã uma freguesia com significativos desníveis no terreno (com óptimos pontos panorâmicos), bastante arborizada, rapidamente propiciou a instalação de casas nobres e burguesas.

Quintas e palacetes foram-se espalhando na freguesia, introduzindo na paisagem, de características rurais, uma «arquitectura ao bom gosto brasileiro», como referia Júlio Dinis (em «Uma Família Inglesa»), entre outras de ingleses e alemães.

Como bons exemplos, podem referir-se a Quinta da China e o Palácio do Freixo. A primeira, rodeada de belíssimos jardins, constitui um excelente ponto panorâmico, de onde é possível alcançar o rio Douro e partes importantes dos municípios de Gondomar e Vila Nova de Gaia. 0 segundo, projectado por Nasoni, constitui nos nossos dias tema de reflexão, já que, sendo exemplar único na cidade, foi, ao longo do tempo, rodeado de instalações industriais que não só o desenquadraram na paisagem original, como ainda o escondem, menosprezado - entre chaminés.

Até final do século XVIII, a cidade do Porto permaneceu praticamente circunscrita ao interior da muralha Fernandina. Contudo, o progresso económico do Porto e o consequente aumento demográfico ditou a necessidade de expansão Extra-muros.


4.2. 0S SÉCULOS XIX E XX

Ainda em finais do século XIX, há menos de cem anos atrás, no Porto, «...Ao Norte... e a Leste... a população rareia... Paranhos e Campanhã são adições periféricas, em grande parte do tipo rural...»(7).

Neste século, em termos administrativos, processaram-se algumas modificações em Campanhã. Se nos primeiros anos compreendia toda a área que hoje conhecemos, mais as actuais freguesias de Rio Tinto, Fanzeres e Valbom, em 26 de Novembro de 1836, com a reorganização administrativa enfio operada, foi anexada ao Porto com a dimensão actual.

0 crescimento populacional verificado foi acompanhado pelo alastramento da mancha construída, orientada principalmente pelas vias existentes cujo traçado reflecte a adaptação às condições topográficas.

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Evolução da Mancha Construída de 1813 a 1980

Observando, o mapa relativo à «Evolução da Mancha Construída», verifica-se que a mais antiga área da freguesia, incluída na trama de 1813, localiza-se no término na Rua de Bonjóia e no lugar de Azevedo, onde actualmente se encontra a Igreja de Campanhã.

Até meados do século XIX, além do já referido Lugar de Azevedo, a expansão pouco afectou esta área, o mesmo não acontecendo a partir das décadas de 40/50 e até finais do século, em que se registou uma intensa ocupação na área central e sul da freguesia.

Esta ocupação, acentuando a tendência que até aqui vimos referindo, fez-se fundamentalmente ao longo das Ruas de S. Roque da Lameira, Bonjóia, Pinto Bessa, Heroísmo, Freixo, Monte Bello (actual Avenida de Fernão de Magalhães) e algumas transversais.

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Alinhamento a seguir na Rua do Monte Bello - 1869
Fonte: Maria Adelaide Meireles, Catálogo dos livros de plantas, 1982

Mas, se é óbvio o crescimento segundo direcções preferenciais, elas não se fizeram ao acaso, foram antes o fruto de opções deliberadas, segundo factores estruturantes.

De facto, ficou este século marcado por um surto industrial que, aliado ao desenvolvimento dos transportes, promoveram o crescimento da população e, consequentemente, uma maior mobilidade, face à forte atractibilidade ao centro da cidade, com abandono da agricultura.

Gerou-se, portanto, um fenómeno recíproco em que, se por um lado as actividades industriais se mostravam mais aliciantes, por propiciarem emprego para as populações até enfio agrícolas, e que poderiam desenvolver ambas as actividades, outras viram-se obrigadas a abandonar a área, dada a modificação das condições iniciais.

Relativamente aos transportes, sobressai o enorme sucesso dos carros americanos em finais do século XIX. Mais tarde, nas primeiras décadas do nosso século, sucedeu-lhe o carro eléctrico, sendo o preço da passagem da Boavista e S. Lázaro a Campanhã 80 e 50 réis, respectivamente.

0 caminho-de-ferro, factor de progresso e um dos responsáveis pelo crescimento da freguesia, deverá também, na sua implantação espacial, ser encarado como uma fronteira, pois a via férrea veio dividir esta área.

Não foi fácil a escolha de um local para a estação. A travessia do rio Douro deveria ser resolvida, caso contrário não se vislumbrava a ligação Norte-Sul e sul-norte.

Foram apresentados três projectos - «Traçado do Areinho»; «Traçado do Campo do Cirne» e o «Traçado do Seminário».

Dada a inviabilidade dos primeiros, foi aprovado o último. Depois de atravessar a Sem do Pilar (em túnel), a via férrea transpunha o rio Douro, em frente ao Monte do Seminário, por uma ponte metálica, dada a menor largura do rio neste local.

Na «.... margem direita, perfuraria em túnel sob o seminário, desdobrando-se a meio da encosta de Campanhã para penetrar noutro túnel sobre o contraforte da Quinta da China, até junto à Rua do Freixo, voltando-se à esquerda para o plaino de Godim, onde ficaria e estação terminal...»(8).

Se a linha de caminho-de-ferro, assim definida, veio limitar a conexão dos espaços adjacentes, pois constitui uma via de difícil transposição, o mesmo não acontece com a estação, que gerou grande concentração e movimento de pessoas, promovendo o desenvolvimento de toda a área à sua volta.

De facto, poder-se-á atribuir a este empreendimento, a que se juntou na última década do século XIX a abertura da Estrada da Circunvalação, o incipiente desenvolvimento de Azevedo que, malgrado desenvolvimentos recentes, permanece ainda uma parcela do território portuense que parece não lhe pertencer, nem tampouco à própria freguesia, lá em baixo, ao longe, «alistada da cidade».

É por demais evidente não só o facto de se ter construído uma barreira à circulação de pessoas no sentido oeste-leste, com a abertura da Estrada da Circunvalação, como também a falta de iniciativas que promovessem a construção de novos acessos à área de Azevedo.

Além destas, outras empreitadas foram levadas a cabo, tais como, em 1872, o prolongamento de uma via a partir da Rua dos Ingleses (Infante D. Henrique) para a estação de caminho-de-ferro do Pinheiro (Campanhã) e da Rua do Bonfim até à Praça das Flores a que se segue a Rua das Antas e a de S. Roque da Lameira.

Acontecimentos congregados num só século, resultaram num significativo desenvolvimento económico, mas não numa melhoria da qualidade de vida de uma população que não parava de crescer.

A resposta ao surto industrial, à migração para a cidade e à procura de habitação por indivíduos de baixos recursos, foi dada pela burguesia que, apesar de enriquecida, pretendia, aproveitando-se da situação, aumentar os seus lucros, instituindo um tipo de habitação operária - as ilhas (que ainda hoje permanecem nalgumas ruas da freguesia, como as do Freixo, de Contumil, do Heroísmo, de Justino Teixeira e das Antas, entre outras), fruto do tipo de loteamento criado no século anterior com os Almadas.

Seria esta paisagem da área oriental da cidade no fim do século XIX, em que a par das construções fabris de Campanhã, nos suaves terrenos de xisto, se espraia com características claramente bucólicas a área de Azevedo, que, com algumas casas rurais e incipientes fabriquetas, mais se identifica com as terras de Gondomar.

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Carta Topográfica da Cidade do Porto (Augusto G. Telles Ferreira, 1892)

No início do século XX a freguesia de Campanhã detinha pois uma fisionomia, ainda, essencialmente rural onde a industrialização foi introduzindo estruturas que permanecem desenquadradas no espaço em que se inserem.

Data desta altura uma referência de Carlos Basto (1938) que reflecte bem o bucolismo da área, quando refere o vale de Rio Tinto, onde desaguam diferentes linhas de água: «... o mais amplo vale, de Campanhã, entre os montes da Bela e Corujeira a Ocidente e o Outeiro de Tine a Oriente».

Terá sido nas décadas subsequentes, que se processaram as grandes modificações em termos de organização espacial, responsáveis pela morfologia urbana da área.

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NOTAS

(2) DIONISIO, Sant'Anna Guia de Portugal, Coimbra, 4.° vol., Entre Douro e Minho, I - Douro Litoral, Fundação Calouste Gulbenkien, 2.< edição, 1985, p. 279.

(3) PACHECO, Helder - Parto, Lisboa, Editorial Presença, 1984.

(4) CRUZ, António - Algumas observações sobre a Vida Económica e Social da Cidade do Porto nas Vésperas de Alcácer Quibir, Biblioteca Pública Municipal, 1967, p. 9.

(5) JORGE, Ricardo - origens e Desenv. de Pop. da Cidade do Porto, Typographia 0ccidental, 1897.

(6) Governador militar da cidade do Porto nomeado pelo Marquês de Pombal em meados do século XVIII.

(7) Ricardo Jorge, op. cit. .

(8) MARTINS, A. Tavares - Paróquia de Santa Maria de Campanhã, Porto, 1966, p. 681.


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