1363-1375
 

 

O  CONCELHO DE CANIDELO DE D. PEDRO E D. INES

Gonçalves Guimarães

I - INTRODUÇÃO

Em Novembro de 1363, D. Pedro cria o Concelho de Canidelo, em resposta a uma petição dos moradores do lugar, outorgando-lhe direitos e prerrogativas inerentes: terem cadeia e juiz eleito:

«...A vos concelho y homes boos da mynha qyta de Canydello saude vy vossa carta que me envyastes dizer que eu vos fizera mercee e vos dera mynha carta em que VOS fiz ysentos y mandey que vos puzera juys de vosso foro e que o elegiades cada huu ano            e querendovos fazer graça y mercee p vos avedes toda jurdiçom civel y cminal outorgovos que posades aver cadea. » 

Este acto, digamos que habitual na Idade Média e em Portugal particularmente vulgar nos séculos XII e XIII, não o seria tanto na segunda metade do século XIV, em plena recessão económica provocada pela Peste Negra, com as consequentes crises sociais. Daí que a criação deste concelho tenha assumido aspectos muito particulares, como muitos outros deste rei a quem a história ainda não perdoou o ter misturado a vida privada com a governação do reino.

O Concelho de Canidelo vai durar apenas uns escassos doze anos. Por carta de 6 de Abril de 1375 D. Fernando ordena «.. a vos juizes de gaya saude mandamos que logo que bista esta carta... cheguedes aquytaa de Canydello e tomade pa vos ajurdiçam delia e husade daqui endiante de toda jurdiçam dessa quytaa. .. »  Contrariava assim a vontade do pai, que já confirmara anteriormente por carta de 3 de Março de 1368 e em que mantinha todos os foros desta terra . Também Canidelo foi vítima da sua inconstância. Mas é duvidoso que na época este lugar tivesse condições para poder vir a ser concelho como as povoações vizinhas de Gaia ou de Vila Nova. E o que procuraremos analisar ao fazermos a resenha da documentação conhecida desde o século XII. Os factos históricos não aparecem isolados do contexto em que se inserem e de há muito tempo que a propriedade desta terra e do padroado da sua igreja de Santo André eram cobiçadas por vários poderosos locais, o que motivou a sua passagem de mão em mão ao longo dos séculos.

II - ANTECEDENTES

Em Maio de 1132, Elvira Nunes, mulher de Suarius Fromarigues, um importante fidalgo das terras de Santa Maria, conjuntamente com seus filhos também eles proprietários de terras no actual concelho de Vila Nova de Gala, doam ao Mosteiro de Grijó, entre outros bens, os direitos que possuem sobre a igreja de Santo André de Canidelo. Esta doação é confir­mada por Remígio Muniz, perfeito da província de portucale, Bernardo bispo de Coimbra e Hugo, bispo portucalense.

Em 1145 Gonçalo Mendes vende um casal em Almeara (Alumiara) ao Mosteiro de Grijó por XV morabitinos

Em 1147, segundo carta escrita por um cruzado inglês que passa por Portucale, as areias do Cabedelo são medicinais e com elas se cobrem os doentes antes de tomarem banho no mar. Curam-se assim várias doenças de pele semelhantes à lepra, o que aconteceu mesmo com um bispo portu­calense 

Em 1152 o mesmo Gonçalo Mendes vende por 50 «módios» e 3 mora­bitino5 as suas vilías de Vaízena (Várzea) e de Almeara (Alumiara) aos cónegos de Grijó.

Em 1156, Nuno Soares, filho de Elvira Muniz, de quem também já falamos, com sua mulher Elvira Gomes, legam ao Mosteiro de Grijó, entre outras propriedades as de Varzena (Várzea) e de Almenara que foram de Nomenduz Odoriz .

Em 1192 João Midiz doa ao bispo portucalense D. Pedro III metade do padroado da Igreja de Santo André de Canidelo a troco de 30 mara­vedis.

Por estes documentos verificamos que até finais do século XII as transacções sucessivas de propriedades e direitos situados em Canidelo passam-se entre três entidades: o Mosteiro de Grijó, os bispos portuca­lenses e a importante família dos Soares ou os seus ramos colaterais instituidores daquele Mosteiro.

Em 1209 o padroeiro da igreja doa a parte que ainda nela lhe cabia ao bispo D. Pedro III, com a condição de um seu filho ser feito cónego, e que acaba depois por ficar com esse mesmo padroado..

Canidelo aparece-nos referido no Foral que D. Afonso III doou à Vila de Gaia em 1255, como um dos seus termos: «... quomodo dividit cum termino de coimbrianos et de candeilo et de a1meara... » 

Nas Inquirições de D. Dínis aparece-nos pouco povoado e pertença de Pedro Afonso Ribeiro. No Censual do Cabido da Sé do Porto é referida uma carta de D. Dínis contra os filhos de D. Rodrigo Afonso Ribeiro que iam habitualmente pousar na igreja, sem que tivessem tal direito, pois uma carta de doação de seu pai fizera à Sé do Porto lho não consentia. Um dos descendentes desta família, o conde João Afonso, que também tinha direito de aposentadoria no Mosteiro de Grijó vai ser uma das testemunhas do casamento de D. Pedro com D. Inês.

No reinado de D. Afonso IV a quinta de Canidelo pertence aos Coelhos talvez por venda a D. Maria Mendes Petita, fundadora do Con­vento de Corpus Christi em Vila Nova. A posse da quinta nesta família vem a ser a causa remota da sua transformação em Concelho anos mais tarde.

III  D. PEDRO, D. INES E CANIDELO

Em 1340 D. Constança chega a Portugal para casar com D. Pedro, trazendo consigo D. Inês. Cinco anos depois morre na sequência de pro­blemas do parto de que nasce o futuro D. Fernando. D. Inês, que pertence a uma poderosa família castelhana com ramificações e interesses em Portugal, tinha sido afastada em 1344 para a vila fronteiriça de Albu­querque. Já então se sabia do ascendente que ela exercia sobre o príncipe. Após a morte da esposa, manda trazê-la para Portugal, passando a viver com ela nas terras da Lourinhã, onde lhe faz três filhos. Mas aí chegam também os prelados e os validos de D. Afonso IV que o incitam a «tomar estado» com a filha legitima de rei. Dirige-se então com a sua amada para o norte, por onde deambula alguns anos em busca de um local sossegado para D. Inês e seus filhos.

Não sabemos em que data o padroado da igreja de Canidelo voltou às mãos dos poderosos locais. E os tempos não iam para grandes legalidades.

Em 10 de Junho de 1352 os João Coelho, tio e sobrinho homónimos, doam ao infante D. Pedro o padroado da igreja de Santo André de Canidelo por escritura lavrada no Mosteiro de S. Francisco, fora dos muros da Vila do bispo portucalense.

Dois dias depois, no mesmo local, D Pedro perante os doadores e o mesmo tabelião faz por sua vez doação do mesmo padroado a D. Inês, que passa assim a ter um novo rendimento assegurado.

Não conhecemos até à data qualquer documento que nos afirme inequivocamente que D. Pedro e D. Inês viveram em Canidelo, mas tudo leva a crer que tal se deu até pela posse da quinta, que D. Pedro vai concretizar e transformar em Concelho. Encontraram aqui a protecção e os bons serviços da poderosa família dos Coelhos, à qual pertence Pero Coelho, um dos apontados executores de D. Inês que aqui a poderá ter conhecido.

É mesmo plausível, por razões que a seguir se aduzem, que aqui tenha nascido em 1353 D. Beatriz o 4.º filho de ambos, que em 1377 com a subida ao trono de seu meio-irmão paterno, parte para Castela, apres­sando a extinção do Concelho.

Em 1354 D. Pedro não se sente bem em lado algum e deambula pelo norte. Em 1 de Janeiro desse ano teria casado religiosamente com D. Inês em Bragança talvez sujeito à sua pressão constante e também da sua família que se queria fazer valer junto do futuro rei. Partem depois para Coimbra e no ano seguinte, a «mísera e mesquinha» é morta.

IV - O CONCELHO DE CANIDELO

Em 1360 D. Pedro começa vivamente a interessar-se por estas terras do julgado de Gaia. Em 23 de Outubro isenta, a seu pedido, os moradores da Afurada «...que he pertença da mynha quytaa de canydello. »

pagarem finta e talha à... mynha vilia de gaya. . . »  Pouco depois arrenda um lugar reguengo da ... .quytaa regia de Canydello. »   a seis home~ que o tinham povoado, o que prossupõe a preocupação de fixar gente naquela terra. No ano seguinte arrenda a um tal Domingos e sua mulher dois casais em Lavadores, pela renda de 16 alqueires.

Em 1363, pela carta de Coimbra já referida cria o Concelho de Canidelo, onze anos depois de ter doado o padroado da igreja a D. Inês. Três anos após, a 2 de Abril confirmava de novo a carta de criação do Concelho e logo por uma outra carta de 22 de Junho concede-lhe o direito de usar selo com armas reais. No ano seguinte, ao redigir o testa­mento, manda entregar a quinta de Canidelo e tudo o que D. Inês nela tinha aos filhos de ambos.

Um ano após, D. Fernando, por carta de três de Março confirma Canidelo como Concelho e em três de Abril entrega a terra a sua meia-irmã D. Beatriz, provavelmente lá nascida, ao tomar conhecimento da última vontade de seu pai. Até que acaba por extinguir o Concelho por carta de 6 de Abril de 1375, retornando-o à tutela do Juiz de Gaia, talvez por influência de D. Leonor Teles, que não perdoou à cunhada não ter sancionado com a sua presença o seu casamento, ou, o que também é bastante provável, desejar aquela terra para a sua família. Em 1377, D. Beatriz segue para Castela onde casa e a quinta de Canidelo muda de mãos.

V - CANIDELO: TERRA COBIÇADA

Em 1381 D. Fernando dá a quinta de Canidelo e a da Afurada a Afonso Gomes da Silva. Esquecendo-se do facto, em Janeiro seguinte dá a quinta da Afurada a Vasco Gomes de Abreu  Levanta-se a questão de quem é efectivamente o dono daquela terra com os protestos do primeiro beneficiado. O rei resolve a contenda confirmando a doação de Canidelo ao primeiro e da Afurada ao segundo. Mas entretanto surge a crise de 1383 e nenhum deles gozou as rendas por muito tempo por terem escolhido o partido do rei castelhano o que lhes acarreta o apresamento dos bens quando D. João Mestre de Avis fica senhor da situação. Mais uma vez, a quinta de Canidelo e a da Afurada servem de recompensa por serviços prestados sendo doadas a Lourenço Mendes, criado da Princesa D. Beatriz que tomou voz pelo Mestre. No ano seguinte, confirma-lhe todos os antigos privilégios de terra isenta ... para todo o sempre pa elle e todos seos herdeyros e sucessores... »  . Mas não muito seguro da sua posse, o novo proprietário solicita nova confirmação, que lhe é dada a 12 de Novembro de 1385, mantendo os privilégios dos moradores. Lembremo-nos que no ano anterior D. João I tinha integrado Gaia e Vila Nova no julgado da cidade do Porto e nesse mesmo ano, os moradores daquela cidade tinham destruído o seu castelo.

Em 1434 Lourenço Mendes vende a quinta de Canidelo a Fernão de Sá, filho do Sá das galés companheiro de armas de D. João I e a venda é ratificada por D. Duarte. Em 1451, D. Afonso V confirma-lhe episodica­mente os privilégios que lhe tinham sido outorgados por D. Pedro. Os Sás do Porto, não aceites pelos moradores daquela cidade como alcaides, procuram elevar o valor da alcaidaria de Gaia e das terras que aqui possuíam. Mas os tempos estavam a mudar e a velha ordem senhorial ressurge num último alento para morrer com o rei Africano.

Entretanto o Bispo do Porto fez valer o seu direito sobre o padroado da Igreja de Santo André de Canidelo, conforme atesta o Censual da Mitra por documento de 1455. A sua visitação passa a competir ao Arce­diago de Oliveira do Douro.

No Foral que D. Manuel dá a Villa nova de Gaya em 1518, em «... Santandre, terra cháa da Gaya anda arrendado o casal dcl Rey a ffernam de anes por oito alqueires de trigo e o casal da Igreja a seu genro Joham Fernandez por meio maravedi e vinte e quatro reais ...». Em 1542 os direitos sobre a Igreja de Canidelo são trocados com a de Santa Maria de Gulpi­lhares, ficando aquela agora a pertencer aos Cónegos de Grijó, que não perderam na troca. Canidelo era então taxado em 130 libras/ano, enquanto que Mafamude, do padroado real 50, Avintes 70, Santa Marinha que era pertença do Cabido em 400 e Va~are5 em 100. Pagava ao Bispo do Porto, por ano, 27 alqueires de trigo, 27 de cevada e 20 de milho.

 

VI -  RAZÕES POLÍTICAS NA CRIAÇÃO DO CONCELHO DE CANIDELO

Podemos perguntar porque teria D. Pedro criado este Concelho e porque razão foi efémera a sua existência?

Pensamos que as razões são as mesmas do Concelho de Gaia criado por D. Afonso III em 1255 e o de Vila Nova criado por D. Dínis em 1288:

a necessidade de uma terra que defendesse os interesses reais na margem sul do rio, face ao poderio dos bispos portucalenses acantonados na sua vila em volta da Sé.

Vejamos os factos então recentes: Em 1355 D. Pedro, ainda infante, está no Porto, onde celebra a paz com seu pai, no convento de S. Domingos.

O Bispo da diocese estava ausente há vários anos por motivos bem poderosos.

Em 1343 o Conselho do Porto apresentara uma lista de homens bons para ele escolher os seus dois juízes. O bispo recusa pois era costume nomeá-los de sua livre escolha e impô-los aos cidadãos. Os que nomeia em seguida, recusa-os a cidade, que entra em amotinação. O bispo recorre para o Papa e os cidadãos para o rei. Depois de uma Assembleia na Igreja de Cedofeita onde estão presentes todas as partes interessadas, o bispo foge para Tui e lança o interdito sobre a cidade e a diocese, e a excomunhão sobre os que acatassem as ordens de D. Afonso IV. Este, aproveitando aquela ausência manda inquirir dos limites do Couto episcopal, questão latente entre todos os reis e os bispos portucalenses da primeira dinastia.

Em seguida manda construir uns armazéns do outro lado do Rio da Vila que o bispo considera propriedade sua. A questão é levada a Avinhão e em 1351 o rei sofre «excomunhão maior».

Em 1354 procura-se o acordo entre a coroa e a mitra, mas a sentença de S. Jorge não é validada pelo Papa e o interdito continua sobre a cidade e só será levantado no tempo de D. João I.

Em 1359 D. Pedro confirma ao bispo D. Afonso Pires a jurisdição sobre alguns coutos, mas o problema anterior mantém-se. Em 17 de Junho de 1361 procura regularizar a situação doando-lhe toda a jurisdição sobre a cidade, mas nada consegue quanto ao levantamento do interdito. A mura­lha entretanto continuava em construção.

Cremos pois que as razões da criação do Concelho de Canidelo por D. Pedro são evidentes. Mas porque não reactivou este rei os Concelhos de Gaia ou de Vila Nova? A resposta estará numa das resoluções que tomou nas Cortes de Elvas em 1361 onde expressa a sua opinião sobre os homens que então estavam à frente dos Concelhos: «os ofícios andavam sempre em alghuumas pessoas, e os outros naituraes da terra que os mereçiam os nom aviam... aquell que for juiz ou vereador, precurador ou thezoureiro d'algum concelho huum anno, que dese dia que sayr de cada um dos dictos ofícios a três annos, nom possa aver em esse conçelho nenhum dos dictos ofícios que assy houve».

D. Pedro procurou com o Concelho de Canidelo encontrar muito mais do que a lembrança do padroado de D. Inês; queria ter do seu lado, nesta margem esquerda do rio, homens bons ainda livres da venalidade que a outros conhecia, que defendessem os seus interesses e os da coroa.


   

 

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