O
Concelho de Canidelo vai durar apenas uns escassos doze anos. Por carta de 6 de
Abril de 1375 D. Fernando ordena «.. a vos juizes de gaya saude mandamos que
logo que bista esta carta... cheguedes aquytaa de Canydello e tomade pa vos
ajurdiçam delia e husade daqui endiante de toda jurdiçam dessa quytaa. .. »
Contrariava assim a vontade do pai, que já confirmara anteriormente por
carta de 3 de Março de 1368 e em que mantinha todos os foros desta terra . Também
Canidelo foi vítima da sua inconstância. Mas é duvidoso que na época este
lugar tivesse condições para poder vir a ser concelho como as povoações
vizinhas de Gaia ou de Vila Nova. E o que procuraremos analisar ao fazermos a
resenha da documentação conhecida desde o século XII. Os factos históricos não
aparecem isolados do contexto em que se inserem e de há muito tempo que a
propriedade desta terra e do padroado da sua igreja de Santo André eram cobiçadas
por vários poderosos locais, o que motivou a sua passagem de mão em mão ao
longo dos séculos.
II
-
ANTECEDENTES
Em
Maio de 1132, Elvira Nunes, mulher de Suarius Fromarigues, um importante fidalgo
das terras de Santa Maria, conjuntamente com seus filhos também eles proprietários
de terras no actual concelho de Vila Nova de Gala, doam ao Mosteiro de Grijó,
entre outros bens, os direitos que possuem sobre a igreja de Santo André de
Canidelo. Esta doação é confirmada por Remígio Muniz, perfeito da província
de portucale, Bernardo bispo de Coimbra e Hugo, bispo portucalense.
Em
1145 Gonçalo Mendes vende um casal em Almeara (Alumiara) ao Mosteiro de Grijó
por XV morabitinos
Em
1147, segundo carta escrita por um cruzado inglês que passa por Portucale, as
areias do Cabedelo são medicinais e com elas se cobrem os doentes antes de
tomarem banho no mar. Curam-se assim várias doenças de pele semelhantes à
lepra, o que aconteceu mesmo com um bispo portucalense
Em
1152 o mesmo Gonçalo Mendes vende por 50 «módios» e 3 morabitino5 as
suas vilías de Vaízena (Várzea) e de Almeara (Alumiara) aos cónegos de Grijó.
Em
1156, Nuno Soares, filho de Elvira Muniz, de quem também já falamos, com sua
mulher Elvira Gomes, legam ao Mosteiro de Grijó, entre outras propriedades as
de Varzena (Várzea) e de Almenara que foram de Nomenduz Odoriz .
Em
1192 João Midiz doa ao bispo portucalense D. Pedro III metade do padroado da
Igreja de Santo André de Canidelo a troco de 30 maravedis.
Por
estes documentos verificamos que até finais do século XII as transacções
sucessivas de propriedades e direitos situados em Canidelo passam-se entre três
entidades: o Mosteiro de Grijó, os bispos portucalenses e a importante família
dos Soares ou os seus ramos colaterais instituidores daquele Mosteiro.
Em
1209 o padroeiro da igreja doa a parte que ainda nela lhe cabia ao bispo D.
Pedro III, com a condição de um seu filho ser feito cónego, e que acaba
depois por ficar com esse mesmo padroado..
Canidelo
aparece-nos referido no Foral que D. Afonso III doou à Vila de Gaia em 1255,
como um dos seus termos: «... quomodo dividit cum termino de coimbrianos et de
candeilo et de a1meara... »
Nas
Inquirições de D. Dínis aparece-nos pouco povoado e pertença de Pedro Afonso
Ribeiro. No Censual do Cabido da Sé do Porto é referida uma carta de D. Dínis
contra os filhos de D. Rodrigo Afonso Ribeiro que iam habitualmente pousar na
igreja, sem que tivessem tal direito, pois uma carta de doação de seu pai
fizera à Sé do Porto lho não consentia. Um dos descendentes desta
família, o conde João Afonso, que também tinha direito de aposentadoria no
Mosteiro de Grijó vai ser uma das testemunhas do casamento de D. Pedro com D.
Inês.
No
reinado de D. Afonso IV a quinta de Canidelo pertence aos Coelhos talvez por
venda a D. Maria Mendes Petita, fundadora do Convento de Corpus Christi em
Vila Nova. A posse da quinta nesta família vem a ser a causa remota da sua
transformação em Concelho anos mais tarde.
III
D. PEDRO, D. INES E CANIDELO
Em
1340 D. Constança chega a Portugal para casar com D. Pedro, trazendo consigo D.
Inês. Cinco anos depois morre na sequência de problemas do parto de que
nasce o futuro D. Fernando. D. Inês, que pertence a uma poderosa família
castelhana com ramificações e interesses em Portugal, tinha sido afastada em
1344 para a vila fronteiriça de Albuquerque. Já então se sabia do
ascendente que ela exercia sobre o príncipe. Após a morte da esposa, manda
trazê-la para Portugal, passando a viver com ela nas terras da Lourinhã, onde
lhe faz três filhos. Mas aí chegam também os prelados e os validos de D.
Afonso IV que o incitam a «tomar estado» com a filha legitima de rei.
Dirige-se então com a sua amada para o norte, por onde deambula alguns anos em
busca de um local sossegado para D. Inês e seus filhos.
Não
sabemos em que data o padroado da igreja de Canidelo voltou às mãos dos
poderosos locais. E os tempos não iam para grandes legalidades.
Em
10 de Junho de 1352 os João Coelho, tio e sobrinho homónimos, doam ao infante
D. Pedro o padroado da igreja de Santo André de Canidelo por escritura lavrada
no Mosteiro de S. Francisco, fora dos muros da Vila do bispo portucalense.
Dois
dias depois, no mesmo local, D Pedro perante os doadores e o mesmo tabelião faz
por sua vez doação do mesmo padroado a D. Inês, que passa assim a ter um novo
rendimento assegurado.
Não
conhecemos até à data qualquer documento que nos afirme inequivocamente que D.
Pedro e D. Inês viveram em Canidelo, mas tudo leva a crer que tal se deu até
pela posse da quinta, que D. Pedro vai concretizar e transformar em Concelho.
Encontraram aqui a protecção e os bons serviços da poderosa família dos
Coelhos, à qual pertence Pero Coelho, um dos apontados executores de D. Inês
que aqui a poderá ter conhecido.
É
mesmo plausível, por razões que a seguir se aduzem, que aqui tenha nascido em
1353 D. Beatriz o 4.º filho de ambos, que em 1377 com a subida ao trono de seu
meio-irmão paterno, parte para Castela, apressando a extinção do Concelho.
Em
1354 D. Pedro não se sente bem em lado algum e deambula pelo norte. Em 1 de
Janeiro desse ano teria casado religiosamente com D. Inês em Bragança talvez
sujeito à sua pressão constante e também da sua família que se queria fazer
valer junto do futuro rei. Partem depois para Coimbra e no ano seguinte, a «mísera
e mesquinha» é morta.
IV
- O CONCELHO DE CANIDELO
Em
1360 D. Pedro começa vivamente a interessar-se por estas terras do julgado de
Gaia. Em 23 de Outubro isenta, a seu pedido, os moradores da Afurada «...que he
pertença da mynha quytaa de canydello. »
pagarem
finta e talha à... mynha vilia de gaya. . . »
Pouco depois arrenda um lugar reguengo da ... .quytaa regia de Canydello.
» a
seis home~ que o tinham povoado, o que prossupõe a preocupação de fixar gente
naquela terra. No ano seguinte arrenda a um tal Domingos e sua mulher dois
casais em Lavadores, pela renda de 16 alqueires.
Em
1363, pela carta de Coimbra já referida cria o Concelho de Canidelo, onze anos
depois de ter doado o padroado da igreja a D. Inês. Três anos após, a 2 de
Abril confirmava de novo a carta de criação do Concelho e logo por uma outra
carta de 22 de Junho concede-lhe o direito de usar selo com armas reais. No ano
seguinte, ao redigir o testamento, manda entregar a quinta de Canidelo e tudo
o que D. Inês nela tinha aos filhos de ambos.
Um
ano após, D. Fernando, por carta de três de Março confirma Canidelo como
Concelho e em três de Abril entrega a terra a sua meia-irmã D. Beatriz,
provavelmente lá nascida, ao tomar conhecimento da última vontade de seu pai.
Até que acaba por extinguir o Concelho por carta de 6 de Abril de 1375,
retornando-o à tutela do Juiz de Gaia, talvez por influência de D. Leonor
Teles, que não perdoou à cunhada não ter sancionado com a sua presença o seu
casamento, ou, o que também é bastante provável, desejar aquela terra para a
sua família. Em 1377, D. Beatriz segue para Castela onde casa e a quinta de
Canidelo muda de mãos.
V
- CANIDELO: TERRA COBIÇADA
Em
1381 D. Fernando dá a quinta de Canidelo e a da Afurada a Afonso Gomes da
Silva. Esquecendo-se do facto, em Janeiro seguinte dá a quinta da Afurada a
Vasco Gomes de Abreu Levanta-se a
questão de quem é efectivamente o dono daquela terra com os protestos do
primeiro beneficiado. O rei resolve a contenda confirmando a doação de
Canidelo ao primeiro e da Afurada ao segundo. Mas entretanto surge a crise de
1383 e nenhum deles gozou as rendas por muito tempo por terem escolhido o
partido do rei castelhano o que lhes acarreta o apresamento dos bens quando D.
João Mestre de Avis fica senhor da situação. Mais uma vez, a quinta de
Canidelo e a da Afurada servem de recompensa por serviços prestados sendo
doadas a Lourenço Mendes, criado da Princesa D. Beatriz que tomou voz pelo
Mestre. No ano seguinte, confirma-lhe todos os antigos privilégios de terra
isenta ... para todo o sempre pa elle e todos seos herdeyros e sucessores... »
. Mas não muito seguro da sua posse, o novo proprietário solicita nova
confirmação, que lhe é dada a 12 de Novembro de 1385, mantendo os privilégios
dos moradores. Lembremo-nos que no ano anterior D. João I tinha integrado Gaia e
Vila Nova no julgado da cidade do Porto e nesse mesmo ano, os moradores daquela
cidade tinham destruído o seu castelo.
Em
1434 Lourenço Mendes vende a quinta de Canidelo a Fernão de Sá, filho do Sá
das galés companheiro de armas de D. João I e a venda é ratificada por D.
Duarte. Em 1451, D. Afonso V confirma-lhe episodicamente os privilégios que
lhe tinham sido outorgados por D. Pedro. Os Sás do Porto, não aceites pelos
moradores daquela cidade como alcaides, procuram elevar o valor da
alcaidaria de Gaia e das terras que aqui possuíam. Mas os tempos estavam a
mudar e a velha ordem senhorial ressurge num último alento para morrer com o
rei Africano.
Entretanto
o Bispo do Porto fez valer o seu direito sobre o padroado da Igreja de Santo
André de Canidelo, conforme atesta o Censual da Mitra por documento de 1455.
A sua visitação passa a competir ao Arcediago de Oliveira do Douro.
No
Foral que D. Manuel dá a Villa nova de Gaya em 1518, em «... Santandre, terra
cháa da Gaya anda arrendado o casal dcl Rey a ffernam de anes por oito
alqueires de trigo e o casal da Igreja a seu genro Joham Fernandez por meio
maravedi e vinte e quatro reais ...». Em 1542 os direitos sobre a Igreja de
Canidelo são trocados com a de Santa Maria de Gulpilhares, ficando aquela
agora a pertencer aos Cónegos de Grijó, que não perderam na troca. Canidelo
era então taxado em 130 libras/ano, enquanto que Mafamude, do padroado real 50,
Avintes 70, Santa Marinha que era pertença do Cabido em 400 e Va~are5 em
100. Pagava ao Bispo do Porto, por ano, 27 alqueires de trigo, 27 de cevada e 20
de milho.
VI
-
RAZÕES POLÍTICAS NA CRIAÇÃO DO CONCELHO DE CANIDELO
Podemos
perguntar porque teria D. Pedro criado este Concelho e porque razão foi efémera
a sua existência?
Pensamos
que as razões são as mesmas do Concelho de Gaia criado por D. Afonso III em
1255 e o de Vila Nova criado por D. Dínis em 1288:
a
necessidade de uma terra que defendesse os interesses reais na margem sul do
rio, face ao poderio dos bispos portucalenses acantonados na sua vila em volta
da Sé.
Vejamos
os factos então recentes: Em 1355 D. Pedro, ainda infante, está no Porto, onde
celebra a paz com seu pai, no convento de S. Domingos.
O
Bispo da diocese estava ausente há vários anos por motivos bem
poderosos.
Em
1343 o Conselho do Porto apresentara uma lista de homens bons para ele escolher
os seus dois juízes. O bispo recusa pois era costume nomeá-los de sua livre
escolha e impô-los aos cidadãos. Os que nomeia em seguida, recusa-os a cidade,
que entra em amotinação. O bispo recorre para o Papa e os cidadãos para o
rei. Depois de uma Assembleia na Igreja de
Cedofeita onde estão presentes todas as partes interessadas, o bispo foge para
Tui e lança o interdito sobre a cidade e a diocese, e a excomunhão sobre os que
acatassem as ordens de D. Afonso IV. Este, aproveitando aquela ausência manda
inquirir dos limites do Couto episcopal, questão latente entre todos os reis e
os bispos portucalenses da primeira dinastia.
Em
seguida manda construir uns armazéns do outro lado do Rio da Vila que o bispo
considera propriedade sua. A questão é levada a Avinhão e em 1351 o rei sofre
«excomunhão maior».
Em
1354 procura-se o acordo entre a coroa e a mitra, mas a sentença de S. Jorge não
é validada pelo Papa e o interdito continua sobre a cidade e só será
levantado no tempo de D. João I.
Em
1359 D. Pedro confirma ao bispo D. Afonso Pires a jurisdição sobre alguns
coutos, mas o problema anterior mantém-se. Em 17 de Junho de 1361 procura
regularizar a situação doando-lhe toda a jurisdição sobre a cidade, mas nada
consegue quanto ao levantamento do interdito. A muralha entretanto continuava
em construção.
Cremos
pois que as razões da criação do Concelho de Canidelo por D. Pedro são
evidentes. Mas porque não reactivou este rei os Concelhos de Gaia ou de Vila
Nova? A resposta estará numa das resoluções que tomou nas Cortes de Elvas em
1361 onde expressa a sua opinião sobre os homens que então estavam à frente
dos Concelhos: «os ofícios andavam sempre em alghuumas pessoas, e os outros
naituraes da terra que os mereçiam os nom aviam... aquell que for juiz ou
vereador, precurador ou thezoureiro d'algum concelho huum anno, que dese dia que
sayr de cada um dos dictos ofícios a três annos, nom possa aver em esse conçelho
nenhum dos dictos ofícios que assy houve».
D.
Pedro procurou com o Concelho de Canidelo encontrar muito mais do que a lembrança
do padroado de D. Inês; queria ter do seu lado, nesta margem esquerda do rio,
homens bons ainda livres da venalidade que a outros conhecia, que defendessem os
seus interesses e os da coroa.